quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Ruína

Despertei faminto.

Mas não sentia a fome pelo ventre. Tão pouco minha boca salivava. Na verdade, minha garganta estava seca.

A fome vinha da minha lâmina.

Levantei-me e olhei ao redor. Corpos. Alguns já estavam desfalecidos por um tempo incalculável. Outros, o sangue ainda nem secara. A batalha certamente havia sido brutal. Talvez heroica. Alguns rostos eram quase familiares. Não que isso importasse agora.

A fome era mais urgente.

Saí do salão e percebi que desconhecia aquele local. Tampouco lembrava de como cheguei nele. Corredores feitos de tijolos de pedra, um tapete vermelho imundo, tochas apagadas. Poderia ser um castelo. Talvez um templo. Até mesmo um calabouço. Não importava.

Vaguei. Procurei cômodo por cômodo. Nada. Apenas os pesados passos da minha bota metálica e o ranger das portas ao serem abertas. Nem mesmo ratos ousavam criar ninhos ali. Revirei quartos. Busquei por salões. Perambulei por escadas. Enfim encontrei a saída, mas ela não fazia sentido. Eu buscava algo que não estaria do lado de fora. Precisei voltar para as profundezas.

Retornei para o cômodo onde despertei. Tão infértil quanto tudo naquela construção. Fiquei estagnado. Tentei me lembrar como havia chegado ali. O que procurava. Quem eram aquelas pessoas. Por que sentia aquela fome...

Perdi a noção do tempo. Perdi as perguntas. Perdi o propósito. Nem mesmo a busca me apetecia.

Até que eu ouvi passos. Fazia quanto tempo que não me sentia ansioso?

Minha espada já estava em riste conforme os ruídos se aproximavam. Eu não piscava. Eu não respirava. Meu coração deveria estar disparado. Entretanto notei que nem isso sentia. Antes que tivesse tempo de me questionar, eles entraram e eu urrei em júbilo.

Tudo ao meu redor se levantou. Cada cadáver se ergueu ao meu auxílio. Corpos, pedaços de pessoas e até mesmo esqueletos. Todos. Ao meu comando.

Pude ver o arrependimento no rosto de alguns dos invasores. Aquele com maior ímpeto ergueu um machado e veio em minha direção.

Ele girou sua arma de forma desengonçada e eu não tive o menor problema em recuar um passo, sentir apenas o vento do golpe e estocar com a minha espada. Mais pelo susto do que por técnica, ele se esquivou, não sem um belo corte na costela. O guerreiro suspendeu o machado acima da cabeça e desceu contra o meu peito. Interceptei o ataque ainda no ar, joguei sua arma para a direita e permiti que meus aliados terminassem o serviço. O primeiro mordeu seu braço, provocando uma boa distração. O segundo aproveitou, agarrou seu tórax, desequilibrou o guerreiro e ambos foram ao chão. O terceiro enfiou a mão em seu abdômen e escavou para dentro, interrompendo seus gritos enquanto sujava o chão com um rio vermelho.

Uma flecha acertou o meu estômago e eu olhei ao redor em busca do arqueiro. O covarde nem havia entrado na sala, disparando em segurança no corredor. Só precisei olhar nos seus olhos para meus aliados obedecerem. Dois dos meus valorosos soldados seguraram seus braços e o trouxeram para nosso lar enquanto ele chutava e se debatia. Para sua infelicidade, ninguém precisava mantê-lo imobilizado, apenas movê-lo para dentro. Não durou nem três segundos cercado pelos meus aliados, que socaram, chutaram e morderam por todos os lados.

Então, minha cabeça doeu num estouro lancinante enquanto eu ouvi palavras sagradas e meus olhos arderam e pareceram querer saltar com a luz que emanou de um símbolo sagrado. Eu não podia permitir tamanha ousadia. Tentei investir contra o maldito sacerdote, mas ele estava protegido. Forcei meus olhos e encarei o bastardo. Ele apontou seu símbolo insignificante contra a minha direção, apenas aumentando a minha fúria. Dei um passo e minha pele ardeu. Dei outro passo e minha carne corroeu. Dei mais outro e nós estávamos frente a frente. Minha espada apontou para sua garganta. Seu símbolo sagrado encostou na minha testa, parecendo estar em brasa de tão ardente. Mesmo entre os feixes de luz e as bênçãos protetoras, nossos olhos se encontraram.

E eu vi medo.

Era tudo que precisava. Num esforço final, minha lâmina atravessou seu pescoço de uma ponta a outra e a luz finalmente se extinguiu. O sangue se espalhou pela minha arma e minha carne sentiu o alívio de se recompor conforme eu me alimentava. Refrescante. Saboroso.

Vi fogo emanando de um cajado, derrubando alguns soldados, e logo notei que era um ataque final desesperado. A conjuradora já estava cercada e desmaiou no primeiro golpe de lança. Seu rosto estava úmido de tantas lágrimas. Talvez ela preferisse estar desacordada em seus momentos finais.

E finalmente eu encontrei o que procurava! Com sua armadura reluzente e sua espada e escudo ferozes, meu algoz abriu caminho pelos meus aliados até me encontrar no combate corpo a corpo. Um dos meus soldados quis aproveitar para atacá-lo pelas costas, mas não permiti. Aquela batalha era importante demais para interrupções. Todos os meus homens ainda de pé bateram continência e permaneceram imóveis, assistindo nosso confronto.

Seu rosto também era familiar. O mais reconhecível desde que despertei. Lembrava o meu próprio rosto, inclusive, apesar de mais jovem e até mais corajoso.

Nossas armas colidiram pela primeira vez em golpes opostos, verticais. Então, sua espada raspou na minha cintura enquanto a minha foi bloqueada pelo seu escudo. O rapaz era bom. Esquivei-me de um corte horizontal com um recuo, evitei um ataque vertical com um salto para a direita e aparei uma terceira tentativa já cansada com a minha própria arma. Era a minha vez.

Girei minha espada na direção dos seus olhos e vi longos fios do seu cabelo caindo aos nossos pés. Estoquei e minha arma encontrou a dele num bloqueio admirável. Ele achou que poderia contra-atacar, mas eu estava preparado e retornei minha lâmina e abri um corte generoso na sua axila.

O sangue era doce.

Meu algoz deu dois passos para trás e largou o escudo, percebendo que seu braço estava inutilizado. Sua espada entrou em guarda e ele esperou o meu movimento.

Descrevi um arco horizontal, ele se agachou e contra-atacou numa estocada, perfurando meu abdômen. Fiquei na defensiva, ele fingiu que iria repetir o golpe, fintou, golpeou e abriu um corte tão profundo que quase separou o meu braço esquerdo do meu ombro. Girei minha espada de baixo para cima, ele aparou e, no mesmo movimento, abriu um corte na minha garganta que quase me decapitou. Até a dor era extasiante.

E finalmente o meu algoz conseguiu o que queria e perfurou meu tórax de uma ponta a outra. Minhas pernas amoleceram. Meu corpo pesou e ficou suspenso apenas pela sua espada. Nossos olhares continuaram cruzados. O meu, inócuo. O dele, doloroso. Não era arrependimento. Talvez luto. Não sei o que senti. Não era sono. Não era morte. Era simplesmente um fim. E, mesmo nos últimos momentos, não era o que eu buscava.

E finalmente eu consegui o que queria e perfurei o seu tórax de uma ponta a outra. Suas pernas amoleceram. Nossos corpos desabaram juntos. E seu olhar ficou tão estéril quanto o meu enquanto seu sangue alimentava a minha espada.

Havia acabado.

Agora, apenas o vazio iria me acompanhar pela eternidade.

E eu encontrei paz quando vi meu algoz despertando.

Ele olhou para os corpos ao seu redor e não compreendeu.

Apenas pegou a espada.

E sua língua, mesmo que seca, percorreu seus lábios enquanto a fome renascia na lâmina.

***

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