quarta-feira, 27 de abril de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Luz

Ei! Esta é a quinta parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a quarta parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.

***

Miguel

- Muito bem, existe mais algum segredo que eu deva descobrir? - Estávamos no meio da cidade, no caminho mais curto e menos discreto para a torre do McKinley. Eu sentia o meu corpo quente de tanta raiva.

- Depende do quanto você vai oferecer pelas informações - Giovan se fez de desentendido.

- Era pra rir? Eu acho que você não vai querer que eu faça piadas sobre os seus segredos, né?

- Que segredos? O seu capitão já disse tudo! Você me contratou porque eu sou bom em infiltração e caça, não foi? Qual é a diferença em saber do meu passado?

- A diferença é que agora eu tenho certeza que não posso confiar em ninguém nessa cidade!

- Foda-se!

Agarrei o pescoço de Giovan como uma serpente dá o bote numa presa.

Foi quando eu percebi as lágrimas.

E soltei sua garganta.

Por um momento, o único som foram seus soluços. E eu me senti a pior pessoa do mundo.

- Foi um acidente… Aquela mantícora foi nossa última esperança… Não tínhamos mais nada a perder… Quando pensamos que poderíamos fazer dinheiro fácil… Jamais iríamos atrapalhar ninguém… Não queríamos caçar lebres ou lobos, essa cidade já tem caçadores demais… Queríamos os maiores, os mais difíceis, os que ninguém caça… Ficaríamos ricos… E provaríamos pro McKinley que ele estava errado sobre mim… Ele estava certo.

- Por que não me contou que o cara tava dificultando a sua vida?

- Porque eu merecia. Ele não iria me matar… É requintado demais pra esse tipo de coisa. Então, ele sempre dava um jeito de me achar e me jogar no calabouço.

- E por que não foi embora?

- Porque eu mereço.

- Vamos tornar essa cidade um lugar melhor.

- Me desculpa, mas não sei se me importo.

- Então por que vai enfrentar o McKinley?

Giovan torceu a boca num sorriso triste.

- Ele podia ter ajudado a Alasca… Não depois do veneno, aquilo foi rápido. Mas ele podia ter evitado. Ela só não queria ter a mesma vida que ele, droga. Ignorou a irmã por tantos anos e agora me culpa pela morte dela? Eu também não estava por perto quando aconteceu, então o que me faz mais culpado do que ele?

Eu não conseguia encarar Giovan. Conseguia olhar para o chão. Conseguia fingir que olhava para a esquina procurando alguém à espreita. Só não conseguia encará-lo.

- E sabe de uma coisa? McKinley já se vingou de mim o suficiente. Tá na hora de eu me vingar dele - seus olhos já estavam secos.

- Senhores, odeio interromper o momento emocional de vocês - Rogerus se pronunciou -, mas fomos cercados.

Olhei ao meu redor e me arrependi de ter estado apenas fingindo poucos momentos antes. Assim que o lanceiro começou a falar, eles saíram dos becos, mais de uma dezena de cada lado da rua, marchando como uma infantaria se prepara para o ataque. Em menos de dez segundos, eles já estavam posicionados e com as mãos em suas bainhas, apenas esperando o comando.

- Crinas Vermelhas, sentido!

As botas saudaram o comandante em uníssono e meia dúzia abriu caminho para Victorious, que caminhou para dentro do cerco despreocupado.

Armadura de batalha polida, elmo fechado, todo prateado, exceto pela capa e pela crina em cor de sangue. Ao se aproxima, ergueu a viseira e exibiu um sorriso com dentes perfeitos. Olhos azuis, claros demais, rosto sem barba e cabelo aparado. Seria um legítimo cavaleiro das fábulas, não fosse a cicatriz que descia pela testa, contornava o nariz e a boca e continuava até a lateral do queixo.

- Saudações, civis. A vizinhança reclamou que vocês estavam causando tumulto pela madrugada.

- E todo o seu batalhão estava na vizinhança, pelo visto - falei por entre os dentes.

- Por favor, esse é apenas um punhado do meu batalhão. Você andou perdendo tempo, Miguel. Ficou resolvendo os problemas dos seus novos capangas e permitiu que a notícia corresse pelas ruas. Óbvio que os idiotas que você enfrentou até agora não estariam preparados a uma hora dessas, mas os homens que realmente protegem essa cidade estão sempre de vigia.

- É “vossa senhoria” pra você.

- Eu não reconheço a autoridade de uma família que abandonou o próprio povo.

- E reconhece a autoridade do McKinley?

- Não me confunda com o covarde o seu finado tio, McKinley é o rei no tabuleiro e ele ainda está bem protegido pela torre. Você pode ter derrubado alguns piões e cavalos, mas o xeque-mate será meu.

- Se temos o mesmo inimigo, deveríamos trabalhar juntos.

- Se você continuar na regência da cidade, voltaremos à estaca zero. É hora do avanço e eu não me esforcei tanto pra você chegar agora e tirar todo o meu mérito.

- Você não é diferente de qualquer um dos outros líderes de gangues.

- Eu estou nesse tabuleiro a mais tempo que você, Miguel. Você ainda está se familiarizando com as regras enquanto eu já estou com as minhas peças posicionadas. A prova da sua ineficácia é essa investida suicida que estava planejando. McKinley é um mago poderoso o suficiente pra varrer qualquer tropa que cerque sua torre e você pensou que poderia invadi-la com três homens. Sua incompetência termina aqui.

- Deixe os meus amigos abandonarem a cidade, então. Eles não têm nada a ver com isso.

- Quando um exército derruba os portões de uma cidade e saqueia seus civis, o que eles tinham a ver com a guerra? Seus capangas, por outro lado, estão bem armados, o que faz deles seus cúmplices.

- Se você tá tão bem informado, sabe que a gente já matou algumas dúzias de homens armados hoje, por que acha que a sua tropa seria diferente? - Giovan mais latiu do que falou.

- Vocês pegaram dúzias de piões desprevenidos. Estão cercados por soldados de verdade agora. Os melhores que o seu exército um dia teve. O sangue de vocês será o último a ser derramado nesta noite.

- Desertores, você quis dizer - foi a minha vez de conter a raiva.

- Quem desertou foi seu finado tio. E eu estou reorganizando a bagunça que ele fez. Pra sua informação, os meus territórios são os com menos crimes, o povo sob a minha jurisdição é o que mais se sente seguro pra andar pelas ruas a qualquer hora do dia.

- Dobre sua língua pra falar do meu tio. E eu sei muito bem quais são seus territórios, são os dos burgueses, os únicos que podem pagar pelos seus mercenários. Assim fica fácil bancar o herói, né?

- A nobreza é uma classe falida. Improdutiva. Decadente. Apenas o melhor líder tático deveria governar e em breve eu vou provar isso. Agora, se me permitem, a jornada de vocês termina aqui.

- Homens! - Uma voz feminina gritou na retaguarda, roubando a atenção de todos, até de Victorious. - Atacar!

E o jogo virou.

A colisão entre metais ecoou ao fundo, pegando metade dos soldados desprevenidos. Sacamos nossas armas imediatamente, mas o traste já estava de volta às fileiras, protegido pelos escudos dos seus lacaios.

- Rogerus, cuida das nossas costas, a retaguarda ainda pode se reorganizar! Eu e Giovan cuidamos desses vermes!

Uma flecha perfurou o olho de um soldado e espetou o escudo de outro, iniciando o combate. A metade atrás de nós estava confusa, sem saber se auxiliava os camaradas que estavam sendo atacados ou se obedeceriam ao líder. A metade à frente, por outro lado, estava sólida. Escudos erguidos e espadas apontadas. Não havia rota de fuga. Talvez os meus aliados conseguissem escalar um telhado a tempo, mas eu morreria tentando de qualquer forma. Se eu iria morrer, levaria o máximo de cabeças comigo.

Giovan disparou três flechas seguidas, sem derrubar ninguém dessa vez. Os adversários deram um passo. Cautelosos. Eles só precisavam derrubar três, nós precisávamos derrubar duas dezenas, talvez três.

Meu aliado ergueu o arco, disparou três flechas para o alto e depois disparou mais duas contra os escudos. Eu pensei que ele estava desperdiçando munição até entender seu plano. As duas últimas chegaram primeiro nos alvos e causaram uma suave distração. O suficiente para as outras três descerem e provocarem gemidos. Se alguma havia sido letal ou não, eu não conseguia enxergar.

Mais um passo. Ouvi um grito vindo de trás, espiei por cima do ombro e vi Rogerus enfiando a lança por debaixo do queixo de um soldado que tentou atacar sozinho. Voltei minha atenção para a linha de frente e os Crinas Vermelhas deram mais um passo.

Respirei lentamente para não deixar a ansiedade me dominar. Uma única flecha disparou e acertou o pé de um soldado, que tentou recuar e não conseguiu. Mantendo o ritmo, seus camaradas avançaram um passo e abriram uma brecha. Em dúvida, eles começaram a realocar a distância entre um e outro, mas eu decidi não dar tempo.

Investi e girei minha espada na horizontal, abrindo uma fenda no ombro do primeiro. O segundo tentou aproveitar para estocar, mas eu me esquivei e descrevi um arco com a minha lâmina, separando seu queixo do rosto. Outro tentou me cercar e foi recebido com uma flecha na axila.

Mantive a posição, desafiando os soldados a abandonarem as fileiras.

- Formação! - A voz de Victorius retumbou dos fundos.

- Venha me pegar, covarde! Ou vai me obrigar a matar cada soldadinho até chegar em você!

Uma flecha derrubou um soldado que mal havia dado o primeiro passo em minha direção. Dois vieram ao mesmo tempo, forçando-me a aparar suas espadas com a minha em vez de atacar. Sem tempo ou espaço para mirar um ataque sem abrir a guarda, acertei um escudo com toda a minha força, partindo a proteção em duas partes. No mesmo instante uma flecha tirou a vida do soldado indefeso, enquanto eu bloqueei um golpe do outro e chutei seu escudo como um touro acerta sua presa, arremessando o infeliz para atrás, atrasando os próximos adversários.

Recuei para enxergar com clareza. Mesmo com Giovan literalmente aparando as bordas, eram inimigos demais para eu me descuidar.

Vi a indecisão em um homem que não sabia onde se encaixar na fileira, deslocado e exposto. Estoquei com ímpeto e estendi minha espada ao máximo, atravessando escudo e perfurando algo por trás da barreira. Aproveitei o peso contrário do corpo caindo e puxei minha arma de volta, retornando à guarda. Aquela pequena brecha foi o suficiente para três soldados tentarem avançar. Um caiu com uma flecha nas costelas, outro foi repelido pela minha espada e o terceiro conseguiu raspar sua lâmina na lateral da minha coxa, fazendo minha perna inteira arder com o sangramento. Aquilo não iria me matar, mas seria um bom primeiro passo.

Mais três vieram e eu só não fui cercado graças ao Giovan, que derrubou dois e quebrou a tática dos restantes. Sem espaço, mirei no tornozelo de um e descrevi um arco completo, na tentativa de cortar todos os três restantes. O primeiro foi ao chão aos berros, que logo foram silenciados por uma flecha. O segundo conseguiu pular para trás a tempo. O terceiro tentou, mas perdeu a placa protetora da bota e um bocado de sangue. Aproveitei e encaixei minha lâmina em sua axila de baixo para cima, abrindo uma fenda até o seu tórax. O soldado que havia recuado retornou e eu usei o falecido como escudo. Com uma mão, empurrei o corpo e livrei minha arma, mas não consegui derrubar o outro dessa vez.

Felizmente, ele preferiu recuar do que insistir no ataque. Enquanto recuperava o fôlego, observei a situação. A tropa estava uma fileira mais magra, talvez duas. Ainda assim, eram cabeças demais para eu conseguir contar. Talvez eu e Giovan tivéssemos eliminado metade. Talvez nem isso.

Olhei por cima do ombro e vi meia dúzia de homens com perfurações letais estirados pelo chão. Ouvi os passos pesados da marcha vindo da retaguarda. Das duas, uma: os reforços derrotaram a tropa inimiga e chegavam até nós três ou foram derrotados e a tropa inimiga estava pronta para nos massacrar pelos dois lados. De qualquer maneira, o resultado da batalha já estaria definido,então olhei.

Os oficiais da cidade marchavam sob o comando de Luzie, a única mulher a chegar ao cargo de tenente que eu já havia conhecido. Não dava para contar a quantidade exata, mas parecia o suficiente para acabar com o confronto.

- Nós temos cem homens, Victorius - blefei. - É hora de você se render.

- Cem homens? Só se for na sua cama! - Ele respondeu sem sair da segurança do seu posto.

- Retire o que disse e eu boto você numa cela comum, com os outros bandidinhos do seu nível, em vez de uma solitária.

- Crinas Vermelhas! Vamos buscar os nossos reforços! Retirada!

Mais passos pesados, mas dessa vez para longe. Eu senti como se estivesse voltando a respirar pela primeira vez desde que havíamos sido cercados.

- Devemos persegui-los, vossa senhoria? - A tenente perguntou.

- Poupe suas tropas, Victorious é famoso pelas suas táticas de guerrilha, ele ainda pode ter alguma carta na manga. Vamos pegá-lo quando estiver acuado, sem ter pra onde fugir. A propósito, obrigado.

- Com todo respeito, vossa senhoria, é hora de encerrar a imprudência e reagrupar as forças da cidade, seja lá qual for o seu plano.

- Tropas são inúteis contra um mago numa torre.

- Vossa senhoria planeja atacar McKinley?

- Por favor, se você usar o meu nome, vamos perder menos tempo do que com “vossa senhoria”.

Ela hesitou.

- Atacar McKinley?

- Espera aí, você vai responder primeiro. Como soube que estaríamos aqui?

- Os soldados do calabouço ficaram preocupados e reportaram que você entrou, prendeu o capitão Gulgrin e saiu sem dar maiores explicações. Quando eu soube, organizei uma guarnição às pressas na esperança de escoltá-lo de volta pro seu castelo, se eu soubesse que enfrentaríamos os Crinas Vermelhas, teria trazido o dobro. Vossa senhoria não pode andar pelas ruas desprotegido.

- Tá bom, tá bom. A minha próxima pergunta: por que eu estou perdendo o meu tempo?

- Perdão?

- Escuta aqui, eu não vou voltar atrás. Se eu sair dessa vivo, explico tudo depois. Se não, tente não ser devorada por essa cidade. Daqui a pouco vai amanhecer e eu preciso resgatar a minha filha.

- Resgatar? - Ela já não tentava esconder o desespero.

Apenas dei as costas e comecei a andar.

- Nós vamos também - ela teimou.

- McKinley mataria todo mundo sem nem sair da torre.

- Então eu vou.

Parei. Pensei. Sussurrei:

- Qual é a probabilidade do Victorious juntar os outros líderes e tentar tomar a cidade?

- Probabilidade nenhuma, é certeza pura - Giovan manteve o humor.

- Faz o seguinte - virei para a tenente. - Eu vou precisar de você amanhã. Hoje, na verdade. Reúna todos os soldados sob o seu comando e vai pro meu castelo. Takezo está por lá, explica tudo pra ele. Conto com vocês.

- Explicar o que, se você não me disse nada?

E segui o meu caminho.
***

- Era esse seu plano? - Perguntei para Giovan. Faltava pouco para a torre agora e eu estava calmo. Eu não sabia o que era calma desde o momento em que soube que minha filha havia sido raptada. Era estranho. Talvez fosse o fato de que eu poderia morrer dentro de instantes. Talvez esse fosse o ápice do desespero. Só sei que, mais do que nunca, não havia volta.

- Que plano? - O trambiqueiro parecia simplesmente não se importar com nada daquilo. Talvez ele não se importasse com o fato da cidade inteira estar em jogo. Talvez ele ainda estivesse preso demais ao passado, desprezando qualquer coisa no presente.

- Eu avançar pra eles abrirem o flanco pra você.

- Não, não havia plano nenhum.

- Que bom - permiti uma risada.

- Tenho um segredo também - eu não fazia ideia de quanto tempo não ouvia a voz do Rogerus. Ah, sim, desde que ele anunciou a emboscada.

- Cara, não tem ninguém na cidade pra delatar o seu passado por aí, vai falar pra quê? - Giovan protestou.

- Pode falar, ninguém aqui vai usar isso como uma arma contra você - incentivei.

- Eu fui um Zephyros dos Cavaleiros do Vento.

- Ah, tá, não faço ideia do que é isso - Giovan resmungou.

- Sério? - Eu mal podia acreditar.

A expressão determinada de Rogerus deixou claro de que não era qualquer tipo de blefe.

- Alguém quer explicar? - O trambiqueiro bocejou.

- É uma ordem de lanceiros que protege um dos Sete Selos.

- Eu devia ter suspeitado quando te vi usando a lança pra saltar. Você está bastante longe de casa, não?

- Não sei se ainda posso considerar Hipérion como casa.

- E por que não?

- Assim como Giovan, eu me sinto responsável pela morte de uma pessoa querida. E esse palhaço aqui do nosso lado nunca vai assumir, mas eu sei que ele está te ajudando pelo mesmo motivo que eu estou. Nós sabemos o que é não poder salvar alguém. Nós repetimos em voz alta a mesma coisa mil vezes, mas nada vai nos convencer de que não foi nossa culpa. E você está tendo a chance que não tivemos. Se eu precisar morrer pra garantir que você não viva com esse sentimento corrosivo, não hesitarei.

- Fale por si mesmo - Giovan cortou o discurso.

Mais uma vez eu não sabia para onde olhar.

- Obrigado - foi tudo o que eu consegui dizer.

- Ei, vamos guardar o sentimentalismo pra depois que chutarmos o traseiro do McKinley. Anda, o dia já tá clareando no leste. E antes que eu me esqueça, se me chamar de palhaço de novo, vai se ver comigo.

E enquanto Giovan fugia do assunto, nós três chegamos ao nosso destino

Chegamos à Torre do McKinley.

- E Miguel, antes que eu me esqueça, ou antes que eu morra sem falar isso, sei lá - Giovan não calava a boca.

- O que é?

- Obrigado por ter chamado a gente de amigos.


***

Ei! Gostou deste conto? Sinta-se à vontade para registrar sua opinião aqui nos comentários e para compartilhar este texto nas suas redes sociais!

E, se quiser, confira a sexta parte: Sacrifício!

domingo, 10 de abril de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Imperdoável

Ei! Esta é a quarta parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a terceira parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.

***
 
Giovan

- Nem pensar - Conde Miguel prontamente recusou o meu pedido.

- Então pode esquecer o resgate. Vai só você e o Rogerus - dei de ombros.

- Escolha outro inimigo, esse eu não posso.

- Por que não?

- Quer que eu liste os motivos?

- Adoraria.

- Darethar é meu capitão, eu não posso matá-lo só porque você está me pedindo. Darethar está guardando o calabouço, que é longe demais do nosso caminho, além de ser suicídio tentar invadi-lo. Darethar é um monstro no combate, não sei se qualquer um de nós daria conta dele. Preciso de mais?

- Darethar é o seu homem mais corrupto e eu não quero matá-lo, apenas trancafiá-lo numa cela, como ele fez com a gente, o que poderia ser considerado o primeiro passo da limpeza do seu condado, diga-se de passagem. Larethar está no calabouço, o qual eu e Rogerus somos muito bem familiarizados, podemos entrar e sair sem nem sermos notados. Darethar é um monstro no combate contra um de nós, não contra nós três juntos.

- Ajude-me com a minha filha primeiro, amanhã eu boto o cara numa cela.

- Amanhã o cara vai fazer um motim contra você! Se prendê-lo, vai ser uma demonstração de força, se só resgatar a sua filha, os bandoleiros vão declarar guerra e estaremos na desvantagem. Não quer a sua milícia fiel a você? Risca o corrupto da sua lista de inimigos e aqueles que não seguem por honra, vão seguir por medo.

Miguel bufou e gesticulou negativamente, teimoso feito uma mula.

- Giovan tem razão - Rogerus me apoiou.

- Como planejam invadir o calabouço? - O Conde começou a colaborar.

- Entrar é sempre mais fácil do que sair e você é a autoridade máxima, oras - respondi. - Eu não arriscaria testar quantos soldados são fiéis a você e quantos são fiéis ao Darethar, mas depois que ele estiver enjaulado, ninguém mais vai segui-lo.

- Daria até pra juntar um batalhão pra atacar o McKinley - o bigodudo coçou o queixo.

- Quantos homens você poderia dispensar do calabouço? Cem no máximo. McKinley tem uma guarda pessoal de quinhentos homens.

- Impossível, a cidade tem dois mil soldados, não sobra tantos homens armados pro McKinley assim.

- Exclui dessa lista os que foram comprados pelo McKinley, mais os que são fiéis ao Darethar e mais uma boa parcela que desertou pra formar os Crinas Vermelhas com o Victorious e você pode apostar que só mil vão ser leais a você. Ou até menos.

- A cidade não pode estar tão podre assim.

- É difícil encarar a realidade? A gente devia ter matado o Gorn e o Yojimbo quando pudemos. Ainda dá tempo de matar o Darethar.

- Isso não seria justiça.

- Começou o papo furado.

- É assim que esses bandoleiros regem a minha cidade, não é? Executando as ameaças. A cidade não vai mudar, se cometermos os mesmos crimes. A gente joga o Darethar numa cela hoje e no tribunal amanhã. E depois vamos atrás dos outros líderes das gangues e fazemos o mesmo um por um.

- Sabe por que você está vivo ainda? Porque bandido é uma raça desunida. Mas se você pressionar, eles vão se unir e aí eu vou preferir estar bem longe desse chiqueiro quando os porcos se rebelarem.

- Então vamos desmembrar os bandidos, até eles não terem forças pra lutar. Anda, chega de perder tempo.

Miguel deu as costas e começou a marchar em direção ao calabouço.

Eu não iria me sacrificar pelo condado. Eu não iria me sacrificar por nada! A filha do conde não era problema meu. A criminalidade não era problema meu. E quando as gangues respondessem, não seria problema meu. A minha vida é o meu único problema e olha que isso já significa problemas demais.

Eu não me esforcei tanto para sobreviver até aqui para por tudo em risco por causa de uma menina que nem conheço.

***

- Você sabe como funciona o calabouço? - Perguntei.

- Lógico que sei. A construção é circular e o interior é composto por três camadas de anéis e o pátio central. A camada externa é para administração e visitas, a camada central são as celas e a camada interior são os refeitórios, sanitários, enfermaria…

- Isso, isso - interrompi. - Só você pode entrar e sair de lá sem ser morto, por isso vai ser a distração.

- A isca, você quis dizer.

- Eu diria que você pode sentar aqui e esperar, mas aí eu não precisaria resgatar a sua filha depois, já que teria conseguido o que quero sem sua ajuda.

O nobre rosnou.

- Enquanto você entra e distrai os guardas, eu e Rogerus vamos escalar os muros e invadir por uma das portas dos guardas.

- Como vocês sabem onde ficam os aposentos dos guardas?

- Simples, foi por lá que a gente fugiu das últimas duas vezes.

- Inacreditável… De qualquer forma, todo o prédio é iluminado por tochas, vocês vão ser pegos.

- Não são tantas tochas assim e a maioria dos guardas noturnos está trabalhando como guarda-costas. Alguns devem estar até dormindo confortáveis em suas casas.

- Eu pago o salário deles pra abandonarem os postos?

- Você parece uma criança falando às vezes.

Outro rosnado.

- Você dá um jeito de falar com o Darethar. Diz que foi assaltado, que veio pedir ajuda pra sua filha, que estava com insônia, sei lá, se vira. Quando você estiver enrolando o cara, a gente entra e pega todo mundo de surpresa.

- Todo mundo?

- Você acha que ele não vive cercado de capangas? E eles são bem treinados com escudos, fica atento.

- E se desconfiarem de mim?

- Isso não é problema meu.

- Às vezes parece que você quer que eu morra.

- Já gastei tempo demais com você pra sair sem uma boa recompensa. Agora, é mais lucro que você fique vivo. Então vê se não estraga o plano.

- Eu vou é estragar a sua cara se você aprontar alguma.

- Aham, estou tremendo de medo. Se me der licença, nós não temos a noite toda - ironizei.

Com mais um de seus rosnados, Miguel foi em direção ao portão enquanto eu e Rogerus demos a volta para um ponto escuro da muralha.

***

Escapar daquele calabouço era brincadeira de criança. Às vezes parecia que os guardas nem se importavam em manter alguém lá dentro. Sem falar que só ficava preso quem não fosse apadrinhado por um dos chefes do crime locais. Yojimbo, Victorious, McKinley, todos eles eram amigos do Darethar. Devia até rolar um desconto na fiança dos capangas.

Rogerus correu e saltou para cima da muralha e estendeu a haste da glaive para me ajudar a escalar. A tocha acesa mais próxima estava numa pequena torre a mais de cem metros, a gente podia tirar um cochilo ali que ninguém notaria.

Havia um guarda fazendo ronda com uma tocha na mão próximo demais da porta por onde planejávamos entrar e mais duas tochas iluminavam a área. Vimos Miguel sendo escoltado para dentro do prédio enquanto esperávamos o guarda se afastar. Ele entrou e a gente ainda teve que esperar cerca de dez minutos até ter certeza de que não havia riscos - tempo precioso demais.

Saltamos para dentro do pátio externo e corremos até a porta. Rogerus prontamente saltou usando sua arma como impulso e subiu no teto para ficar de vigia, enquanto eu apaguei as duas tochas e comecei a destrancar a passagem.

Era mais difícil trabalhar na penumbra da noite e a fechadura não era vagabunda como as das portas de casas, sem falar na ansiedade por poder ser pego por um guarda a qualquer momento. Afastei esse último pensamento sabendo que Rogerus estava de vigia e me foquei na fechadura.

Não era complexa, mas o metal era robusto. Eu precisava encontrar o ponto preciso com os alfinetes e girar com precisão para destrancar aquela maldita porta. Usei mais o tato e fui por tentativa e erro até achar o ponto exato e…

- Tem um guarda vindo - Rogerus estendeu a glaive para me ajudar a escalar.

Subi com pressa e nós dois ficamos espiando pelo teto. Minhas mãos já estavam no arco e numa flecha e meus olhos já estavam no olho do infeliz.

- Precisava ter usado a ponta? Não podia ter estendido a haste? Quase me cortei nessa porcaria.

- Cala a boca, ele tá perto.

O guarda bocejou alto e ficou pensativo olhando para a porta. Girou a maçaneta para confirmar que estava trancada e olhou ao redor.

- O que aconteceu com as tochas? Droga, estou sem a pederneira, vou ter que buscar...

Lentamente, o guarda se afastou e eu voltei a respirar com alívio.

Desci e voltei ao serviço. Mesmo já sabendo onde era o ponto da fechadura, precisei cutucar até encontrar de novo e…

Um estalo.

Abri a porta, Rogerus desceu do teto, pegamos uma das tochas e entramos.

Dentro, vasculhamos o escritório até acharmos o suporte para pendurar as chaves e um lampião. Enfim, teríamos acesso aos principais corredores e salas e uma iluminação menos chamativa do que a tocha.

- Não dá vontade de explodir uma bola de fogo aqui dentro? - Rogerus suspirou, como se aquilo fosse um sonho doce.

- Começa a estudar magia pra próxima vez que passarmos por aqui.

- Não passaremos mais, se o conde for um homem de palavra.

- Ah, se o Darethar for preso aqui, eu vou querer ser o novo responsável por essa espelunca.

- Será que o nosso contratante já encontrou o desgraçado?

- Provavelmente, temos que nos apressar.

E entramos para o longo corredor anelar. O capitão só frequentava três lugares do calabouço: seu escritório, seu quarto e a sala de torturas, todos aposentos particulares do maldito. Ele provavelmente encontraria o conde no primeiro. Seguimos direto por várias portas e passagens até a escada para o segundo andar.

Nele, algumas tochas estavam acesas mais adiante, indicando a presença de sentinelas. Eu sabia que ninguém ouviria os passos de Rogerus, mas eles ainda pareciam tambores comparados aos meus. Não podíamos contar apenas com nossa destreza, seria abusar da sorte seguir os corredores iluminados. Andamos até um ponto menos arriscado e entramos num corredor vazio e seguimos em zigue-zague, sempre evitando qualquer sinal de guardas, às vezes nos escondendo e esperando alguns passarem. Até a respiração do meu amigo já estava me irritando! Ele era ágil como um felino, enquanto eu era silencioso como um fantasma, uma diferença gritante.

Não sei quanto tempo perdemos naquele andar, nem quantos becos sem saída encontramos ou quantos guardas evitamos. Sei que encontramos o escritório. Dois guardamos equipados com lorigas segmentadas, escudos de metal largos e machados de combate estavam resmungando na porta. Sem elmos, felizmente.

- Não sei, acho que ainda não.

- Por que não? Agora é perfeito.

- Darethar é preguiçoso. Não vai arriscar se não tiver certeza.

- Se ele não fizer, vai rodar.

- Por quê?

- Ninguém brota de madrugada numa masmorra se não tiver feito merda. E esse conde está pronto pra cagar na nossa cabeça, isso sim.

- O capitão sabe extrair informação dos outros.

- Do jeito que ele extrai, eu diria até que sou filho de um elfo. Quero ver ele fazer alguém falar sem amarrar o coitado primeiro. E não parece que é isso que vai acontecer ali dentro.

Nada de útil.

- Precisamos entrar agora - Rogerus sussurrou.

- Queria ver se eles soltavam alguma coisa - respondi o mais baixo possível.

- Tipo…?

- Tipo “o conde avisou que tem dois ex-prisioneiros aqui dentro e achou que era melhor pedir ajuda pro Darethar pra resgatar a filha dele”.

- Se ficarmos aqui muito tempo, vai aparecer algum guarda fazendo ronda atrás de nós, aí vamos estar cercados.

Não tinha como discordar.

Peguei duas flechas, estiquei a corda do arco, fechei os olhos e prendi a respiração.


Eu me foquei até ouvir o silêncio. A respiração ruidosa do Rogerus ao meu lado. Um mosquito no fundo de um corredor. E dois guardas latindo, esperando pelas minhas flechas. Era como se o tempo desacelerasse.

O suficiente para eu abrir os olhos, entrar no corredor, olhar bem para o destino da minha arma e soltar as flechas.

Graciosas como cisnes.

Até encontrarem o nariz e tórax do primeiro guarda.

O segundo tentou empunhar seu escudo, mas era lento demais. Seu amigo ainda nem havia tombado quando eu soltei mais duas flechas - não tão precisas. Uma resvalou numa placa da armadura. A outra raspou no seu pescoço, nada elegante.

Ele gorgolejou, empurrou a porta que protegia e morreu dentro do escritório, sendo fiel aos seus aliados em seu momento final. Eu ficaria admirado, se isso não complicasse por completo a minha noite.

- Filho da puta! - Alguém gritou.

Pude ver Miguel sacando sua espada de duas mãos e partindo um guarda ao meio e abrindo uma ferida generosa no abdômen de outro, antes que Rogerus corresse para direção da sala e estocasse contra o ferido, encerrando o trabalho do conde.

Alguém assoprou um apito com vontade para alertar as sentinelas distantes. Não teríamos muito tempo.

Fiquei na porta, onde meus flancos estariam protegidos e onde eu poderia mirar com facilidade em qualquer um que atacasse os meus amigos.

O problema é que haviam guardas demais na sala e alguns tiveram tempo de notar a minha presença.

O primeiro só deu um passo e recebeu uma flecha no rosto, enquanto mais dois ergueram os escudos e avançaram. Atirei na perna de um deles, sem conseguir penetrar na tornozeleira metálica, e recuei.

Enquanto me afastava, saquei mais uma flecha e me preparei. Um guarda me seguiu, mantendo o escudo alto. Quando tentou olhar por cima da proteção, soltei a flecha e atingi apenas o aço. Aproveitei que o escudo estava alto e disparei novamente, atravessando seu joelho dessa vez. O idiota foi ao chão, gritando e bloqueando a passagem do guarda que vinha atrás.

Aproveitei o momento de distração, peguei impulso e chutei o escudo com toda a minha força, fazendo o aleijado rolar para trás e derrubar o outro. No meio da confusão, saquei minha espada curta e enfiei no pescoço do primeiro. O segundo percebeu que estava perto da morte, tentou pegar o escudo para se defender e eu girei minha lâmina e abri uma fenda entre seus olhos.

Guardei minha espada, voltei para a porta e a situação não estava boa. Miguel estava encurralado por quatro guardas num canto. Se ele atacasse, abriria brecha para ser fatiado. Aparentemente, a intenção não era matá-lo de imediato, apenas dar tempo para Darethar matar Rogerus e depois cuidar do conde pessoalmente.

O meu amigo, por sua vez, conseguira manter os inimigos afastados graças à sua glaive, mas não havia se posicionado tão bem quanto o nobre e estava cercado. Uma roda de guardar e o lanceiro e o capitão no centro. Antes que eu pudesse começar a distribuir morte entre nossos adversários, dois deles bloquearam o meu caminho com os escudos erguidos, protegendo os demais. Os reforços já deviam estar chegando e logo eu seria atacado pelas costas.

Iríamos todos morrer um por um ali dentro.

Enquanto eu pensava numa solução, Darethar girou seu mangual, forçando Rogerus a bloquear com a glaive e aproveitando para se aproximar e acertar um encontrão com seu escudo no peito do meu amigo, empurrando-o mais de um metro para trás e permitindo que seus capangas o atacassem livremente. Ele fez o seu melhor para aparar os golpes, mas era impossível. Ele afastou um machado, se esquivou de outro, mas um conseguiu atravessar seu colete de couro e arrancar um filete de sangue e mais um conseguiu raspar o machado em seu antebraço.

Sem tempo para pensar, atirei três flechas desesperadas contra os guardas que cercavam Miguel. Dois tombaram imediatamente e outro grunhiu de dor e surpresa. Sem olhar para conferir se o conde iria aproveitar a oportunidade, larguei o arco, corri na direção dos dois guardas e, no exato momento em que eles ergueram os machados, saltei, rodopiei no ar, evitando um ataque, peguei impulso num escudo, saltei mais uma vez para cima de Darethar, saquei minha espada curta e fui atingido pelo seu escudo, capotando pelo chão para um lado e a minha espada curta para o outro.

- Ora ora! Estava com saudades de casa?

Um machado veio na minha direção, dei uma cambalhota e recebi a bota do anão no meu estômago.

- Por que não pediu pra morrer no nosso último encontro, meu camarada? Tantos já pediram o mesmo por menos, não teria sido vergonha nenhuma ser mais um.

- Porque a sua mãe ficaria inconsolável de saudades! - Senti o sangue em meus dentes.

- Ha! Lembrei porque eu gostava tanto de arrancar a sua pele. Por causa do seu senso de humor!

A bota veio de novo, mas eu estava preparado dessa vez. Agarrei seu pé e girei com toda a minha força, fazendo-o bater de cabeça no solo. Olhei ao meu redor para escapar dos machados que certamente me atacariam, mas tudo o que vi foi Miguel decapitando um guarda e os outros tentando decidir entre proteger o líder ou proteger as próprias vidas.

Quando voltei minha atenção para Darethar, fui arremessado pelo impacto do seu escudo. Sem poder esperar minha cabeça parar de dar voltas, catei um machado e me levantei ainda zonzo. Pisquei com força e vi uma bola com espinhos vindo na minha direção.

Agachei-me e deixei que o mangual girasse no ar. No mesmo movimento que a arma foi, ela voltou e eu bloqueei com o cabo do machado e fui atingido pelo escudo e empurrado para trás mais uma vez. Olhei ao meu redor procurando uma solução, mas tudo que vi foram meus aliados lidando com vários guardas. Estavam os dois vivos, ao menos.

O mangual girou mais uma vez e eu brandi o machado ao mesmo tempo. Não sei se tentei arrebentar a corrente da arma inimiga, se tentei enganchar a bola com cravos ou se tentei só evitar o golpe, sei que as duas armas se emaranharam e eu dei um solavanco, desarmando o anão. Para a minha infelicidade, seu escudo também era sua arma.

Saltei para a direita quando a proteção tentou me acertar, avistei minha espada curta e dei uma cambalhota para recuperá-la. Um machado pesado era quase inútil nas minhas mãos, já uma lâmina leve me daria alguma chance. Quando finalmente empunhei minha arma, Darethar já havia me alcançado.

- Você me cansa!

Um golpe com o escudo.

- A sua irmã já disse isso várias vezes.

Uma esquiva para a esquerda.

- Eu não tenho irmã!

Uma tentativa de acertar o meu pé.

- Então foi seu irmão, vocês todos têm barba! Só não sabia que todos os anões tinham boce…

Um empurrão interrompeu minha bravata.

Estávamos a cinco passos de distância. O suficiente para ele vir para cima de mim feito um touro e para eu arremessar a minha espada curta e torcer para acertar o alvo.

Limpei minha mente, ergui o abraço, olhei nos olhos de Darethar e arremessei a lâmina.

- Errou! - Ele gritou em jubilo.

- Na verdade - eu me sentia até um pouco mais calmo. - Eu acabei de matar o seu último guarda.

O olhar de pavor do nanico foi impagável. Ele deu meia volta e ergueu o escudo, como se tivesse alguma chance de lutar sozinho, apenas para conferir que eu não havia blefado. Rogerus e Miguel estavam preparados para flanqueá-lo.

- Solta o escudo agora ou pode dizer adeus a sua vida, traidor! - O conde ordenou.

O ex-capitão obedeceu. Eu recolhi a peça enquanto Rogerus encostou a lança no pescoço do pária, ela ficaria bem decorando a minha casa.

Passos ecoaram do corredor.

Os reforços chegaram e ficaram espantados com a cena. O escritório havia se transformado num matadouro. Um dos novos guardas até vomitou num canto.

Quando um deles finalmente saiu do transe, conseguiu se esperto o suficiente para se dirigir ao Miguel:

- Meu lorde, devemos preparar a execução desse traidor?

- Eu acho que tem um ou dois sobreviventes estirados no chão. Dá uma conferida e faz os primeiros socorros. Depois, eu quero essa sala brilhando até o amanhecer.

- Meu lorde, não tem vassalos no calabouço a essa hora.

Miguel sorriu para mim.

- Isso não é problema meu - o bigodudo aprendia rápido. - Vocês dois. - Ele se virou para mim e para o Rogerus. - Tenho a impressão de que vocês conhecem a pior cela desse calabouço.

- Intimamente - respondi.

- Ótimo, o meu querido capitão aqui vai conhecê-la de um novo ângulo.

***

- Acha que alguém vai te respeitar por isso? - Darethar teve a ousadia de se pronunciar enquanto era escoltado para a solitária.

- Acho que você devia agradecer por ainda estar vivo - Miguel respondeu com o mesmo nível de simpatia.

- Eu perguntei pro Giovan.

E o nobre ficou sem reação.

- Repara não, é que o baixinho não está acostumado a ficar na desvantagem. Só sabe acusar os outros por crimes que não cometeram e não sabe o que fazer agora que está sendo enjaulado pelos crimes que cometeu.

- Olha só quem está falando de crimes… O que vocês pensam que estão fazendo? Justiça? Isso é uma piada.

- Você não sabe o que é justiça.

- Sei sim. Quem está no poder bota os amigos dentro do castelo e os inimigos no calabouço. Não é exatamente o que vocês estão fazendo?

- Olha, eu não estaria fazendo isso, se não fosse pela sua hospitalidade.

- Você acabou de falar sobre “crimes que não cometeram”. Não me lembro quando você veio parar aqui sem ter cometido um crime. Seu novo amigo sabe do seu histórico?

- Lógico que sabe.

- Ah… Então ele sabe do veneno de mantícora…

- Sabe.

- Sabe do incidente também?

- Que incidente? - Miguel era rápido em questionar.

Darethar riu. Sabia que nunca mais ia ter a vida mansa de antes, mas estava determinado a me levar junto.

- Acontece, meu lorde, que o Giovan não é nenhum tipo de injustiçado ou qualquer herói do povo. O bonitão não é daqueles que rouba dos ricos pra dar aos pobres, sabe? Ele é do tipo que trabalha pra quem pagar mais, só isso.

- E…? - O conde me olhava enquanto ouvia.

- E sabe por que ele vendeu o veneno da mantícora?

- Isso é passado - interrompi enquanto abri a porta da solitária.

Entramos na pequena cela. Uma única e estreita janela era a única fonte de luz e ar. Mas não era esse o problema do prisioneiro. O problema era o buraco no meio do chão. Quando a cela era utilizada para assustar ou doutrinar, o prisioneiro ficava ali, contemplando o buraco. Quando a cela era utilizada para dar uma morte muito miserável, o prisioneiro era jogado dentro do buraco e esquecido para sempre. Não preciso nem falar qual era a minha vontade naquele momento.

Darethar entrou sem objeções e, antes que eu fechasse a porta de ferro maciço, Miguel segurou o meu braço.

- Por que o Giovan vendeu o veneno de mantícora?

O ex-capitão sorria como se estivesse na própria festa de aniversário.

- Porque ele só se deu conta que não sabia usar o veneno quando era tarde demais. Ele tentou caçar um urso, mas em vez de matar o bicho, só o deixou louco e furioso. O urso matou cinco caçadores antes de ser abatido.

Miguel ouviu tudo com atenção. No final, ele mesmo foi fechar a porta.

- E tem mais.

Havia apenas uma fresta entre o anão e o corredor.

- A namoradinha do Giovan também descobriu que não sabia usar o veneno tarde demais. Só que ela matou a si mesma tentando envenenar as flechas! Ah, tem mais um detalhe, não sei se esse é importante, se você estiver com pressa, pode fechar essa porta. Sem pressa? Tudo bem. A garota era ninguém menos do que Alasca McKinley, a irmã mais nova do Denali. É por isso que o Giovan passou tanto tempo aqui nessa mesma cela, meu lorde. Os meus guardas não foram os primeiros cidadãos do seu condado que esse pivete matou e nem serão os últimos. Boa sorte com ele.

Os olhos do Miguel não saíram dos meus em momento algum. Gélidos. Arbitrários. Quase rancorosos.

E, sem mais nenhuma palavra, o conde fechou a porta da solitária.


***

Ei! Gostou deste conto? Sinta-se à vontade para registrar sua opinião aqui nos comentários e para compartilhar este texto nas suas redes sociais!

E, se quiser, confira a quinta parte: Luz!