domingo, 10 de julho de 2016

Ruptura

- Olha como ele é pequeno…

- Ei, nanico! Sua vez!

- Eu não quero lutar…

- Como é que é?

- Além de pequeno, é covarde!

- Eu já sabia.

- Levanta agora e eu prometo pegar leve.

- Eu já disse que não quero lutar.

- Quem disse que você tem opção?

Eles me cercaram.

Eram seis, todos maiores e mais velhos. A vida era assim, desafios, brigas e disputas. Esse era o significado de ser um orc. Acho que nenhum deles havia compreendido isso. Acho que eles só faziam. Só existiam. Limitados.

Peles cinzas e ásperas. Ombros e braços largos e desajeitados. Mandíbulas pronunciadas e presas afiadas. Eles eram todos iguais. Logo seriam adultos formados e guerreiros. Logo morreriam. Iguais aos outros. Todos iguais. Todos limitados.

Se só o forte sobrevive, por que os orcs morrem tanto? Porque sempre repetem os mesmos erros. Porque não enxergam o óbvio. Hoje, aqueles seis disputavam com os punhos. Amanhã com clavas. Os melhores com machados. Força e número eram úteis, mas se bastassem, não viveríamos saqueando nossos vizinhos. Algo a mais era necessário. Algo diferente. Ilimitado.

O mais gordo não esperou eu me levantar para desferir um chute doloroso no meu estômago. Confesso que precisei recuperar o fôlego. Então esperou eu começar a me levantar para tentar outro golpe, mas eu não sou estúpido. Apoiei-me nos joelhos apenas para ter base para agarrar o novo chute, puxar seu pé e derrubá-lo. Apenas para ter tempo de me levantar ao som da risada dos outros.

- Eu não quero lutar.

- Cala a boca! - O gordo gritou enquanto pulava na minha direção sem nem se equilibrar antes.

Dei um passo para o lado, ele tropeçou e voltou para o solo e provocou mais risadas.

Aguardei um novo golpe, mas recebi uma trapaça. O gordo pegou areia e tacou nos meus olhos. Mal comecei a limpar minha visão e recebi um soco no estômago. E então outro no queixo e mais um na têmpora e mais outro no nariz.

Percebendo o padrão nos golpes, não precisei enxergar para agarrar seus punhos e interromper o ataque. Forcei meus olhos a abrirem mesmo sujos e os mantive abertos enquanto as lágrimas escorriam e limpavam minha visão. Logo, pude piscar sem sentir nenhum grão em minhas pálpebras e voltei a enxergar meu agressor, que expressava um misto de confusão e medo.

Ele tentou me empurrar, mas eu mantive seus braços presos nas minhas mãos. Ele mostrou as presas e eu mostrei as minhas. Ele tentou me empurrar e eu usei o seu peso ao meu favor, desestabilizei seu equilíbrio e joguei-o para trás. Não por acaso, havia uma pedra em sua trajetória. Uma pedra que não estava lá antes. Posicionada exatamente onde o gordo tentou se equilibrar e tropeçou, voltando ao chão e às risadas.

Observei o gordo se reerguer. Mesmo assustado, a raiva e a humilhação prevaleciam. Era um orc digno de respeito. Traria orgulho à nossa tribo quando se tornasse um guerreiro. Talvez conquistasse seu machado mais cedo do que os outros. Ele não iria desistir. E nem eu.

Desviei de um soco direcionado ao meu rosto.

- Eu…

Evitei uma joelhada destinada à minha virilha.

- Não…

Esquivei de um cruzado mirado no meu pescoço

- Quero…

Bloqueei uma cotovelada que já não tinha alvo planejado

- Lutar!

E senti um murro na minha nuca.

- Você fala demais.

Então um pé se enganchou no meu enquanto outro murro estourou no meio das minhas costas.

Não havia para onde fugir, pois os pontapés vieram de todos os lados. Não sei se todos os seis estavam atacando. Talvez apenas dois ou três decidiram se unir à covardia. Talvez ainda mais acharam graça no espancamento e estavam se divertindo às custas da minha dor.

Meu tórax ardia por dentro e por fora de tanta surra. Meu abdômen latejava a cada nova pancada. Meus braços e pernas não reconheciam mais tato além da dor. Minha cabeça dava voltas e voltas em meio à dormência.

Dentro de mim, não havia humilhação. A covardia seria respondida com vingança. Não havia medo, minha genitora já havia me dado surras piores. Não havia remorso, aquilo era típico dos limitados. Na verdade, eu estava decidido a prestar uma caridade. Eu estava decidido a quebrar suas limitações.

Em meio aos pontapés, foquei meu espírito na caverna ao nosso redor. Aos túneis de pedra que chamávamos de abrigo. A caverna não nos protegia em vão. A caverna nos aceitava porque éramos dignos. A terra era nossa aliada. E a terra favorecia aqueles que sabiam disso.

Primeiro foi apenas um solavanco de advertência. Eles sentiram e estranharam. Nunca haviam sentido um tremor. Depois veio a vibração e eles perceberam que não estavam seguros. E finalmente a terra rugiu e fez os covardes capotarem.

De pé, olhei ao meu redor. Apenas um tentava se levantar para me enfrentar, três apenas tentavam retomar o equilíbrio e dois rastejavam para longe.

Chutei o pescoço do único bravo que ainda cogitava me desafiar. Agarrei a nunca de outro e afundei seu rosto contra a parede. Tirei mais um do chão, ergui sobre meus ombros e arremessei contra o último que não tentava fugir. Acertei o solo com o meu calcanhar e fiz a terra urrar de novo, impedindo a fuga dos covardes. Esses não eram dignos. Saltei contra as costas de um deles, sentindo um estalo bruto. Sem descer da primeira vítima, peguei impulso e joguei-me com todo o meu peso no meu cotovelo em cima da cabeça do último.

Por fim, levantei-me e rosnei para os derrotados:

- Da próxima vez que eu tentar poupá-los, ouçam o aviso.

***

- Ei, bruxo! O chefe quer te ver!

Ser chamado de bruxo era melhor do que ser chamado de nanico. E ser chamado para falar com o chefe por um dos capitães também deveria ser uma honra. Exceto pelo fato de eu ter usado magia em público.

A magia assusta os limitados. Os conjuradores foram caçados por muito tempo, até que surgiram conjuradores tão fortes que não podiam ser caçados. Então, aqueles com o dom da magia passaram a ser úteis. Agora era hora de decidirem o que eu era.

- Você não é nanico - o capitão elogiou enquanto percorríamos os túneis.

- Obrigado.

- Eu também era o menor. Mas, assim como você, era por ser o mais jovem. Nunca vimos um garoto dar conta de seis. Você deveria estar orgulhoso.

- Preferia dar conta de goblins. Ou ogros. Ou humanos.

- A hora vai chegar.

- Então eu vou ser um guerreiro? Vou ganhar um machado?

- Ainda não. O chefe quer dar uma olhada em você. Saber que tipo de bruxaria usa. E o patriarca quer conferir também.

- O patriarca? Devo ficar contente ou preocupado?

- É isso que vamos descobrir.

E entramos no salão do chefe, onde só entravam os líderes da tribo, aqueles que iriam receber alguma honraria ou aqueles que seriam executados.

Sentado em um trono de rocha e couro, Dagorm Quebraescudo, o chefe, era a maior pessoa que eu conhecia. Os ombros pareciam pedregulhos. O queixo se estendia através de uma barba espessa que descia até o tórax. A cabeleira crespa estava sempre amarrada na nuca. Olhos ferozes. Ao seu lado, um machado estranho, simétrico demais. Diziam que ele havia conquistado de um anão nobre, seja lá o que for “nobre”. Além do machado, seu maior troféu era seu manto. Ou capa, não sei como definir. Sei que os capitães gostam de exibir o couro de alguma besta morta nos ombros, geralmente lobos ou ursos. O chefe tinha as asas de um morcego atroz, conquistado numa ousada incursão pelos territórios dos elfos sombrios.

Toruk, Caçador de Feras, o capitão, se posicionou ao lado direito do chefe. Era o único orc que eu já vi usando armadura de aço. Peitoral, manoplas, botas e ombreiras de metal amassado e lascado. Não faço ideia da origem daquele equipamento, só sei que o capitão tinha fama de gostar de caçar uns tais de paladinos, só sei que eram humanos. Seus cabelos ficavam soltos e alcançavam os ombros e seus olhos sempre aparentavam monotonia. Ele não costumava rosnar ou exibir as presas. Sua intimidação vinha da calma, do tédio. Nenhum inimigo suportava ser desprezado. E o capitão dizia que isso fazia um guerreiro abrir a guarda mais do que qualquer manobra.

E ao lado esquerdo do chefe, Necron Mão Morta, o patriarca. O único xamã da tribo e o orc mais velho de todos. Certamente era maior do que Toruk, apesar da postura sempre curva enganar as impressões. Nenhum pelo, apenas rugas em sua pele. Muitas rugas. Trajava manto de couro conquistado de humanos conjuradores, talvez arcanos. Raro para os costumes orcs, seus trajes ainda não estavam rasgados, o que seria um sinal de covardia, caso não se tratasse do patriarca, o único “não-guerreiro” respeitado. Seu cajado de madeira robusta era adornado com três crânios de diferentes povos da superfície, um humano, um anão e um elfo, e no cinto, três mãos decepadas, de um robgoblin, um reptiliano e um minotauro. Apesar da óbvia idade, seus olhos não demonstravam cansaço. Demonstravam atenção, a observação que muito busca e pouco revela. O olhar mais perigoso do mundo. Mas nada disso era mais chamativo ou assustador do que seu braço esquerdo, responsável por sua alcunha: seu antebraço era decrépito, tomado por cicatrizes abertas e pus, ao passo que sua mão era osso cinza e limpo. Parecia que a mão pútrida era sua favorita, pois todos conheciam seu hábito de gesticular e manipular qualquer objeto com seus ossos expostos.

- Aqui está o bruxo - o capitão anunciou.

- Bruxo? - O patriarca questionou com sua voz rasgada. - Que eu saiba, o garoto não fez nenhum pacto.

- Tanto faz.

- Tanto faz para os estúpidos. Um pacto significaria prestar devoção aos abissais, o que eu imagino que desagradaria nosso chefe, não é mesmo?

- É isso que você deve avaliar… Bruxo.

- Então pare de latir e nos deixe conversar. Qual é o seu nome, garoto?

- Zharon.

- Estou certo sobre você não ter feito nenhum pacto, não é?

- Sim.

- Pode provar? - O capitão interrompeu.

- Ele precisaria de algum item para invocar o pacto, ou teria alguma marca pelo corpo - o patriarca respondeu. - Não quero ficar analisando o corpo de ninguém, então não vejo problema de esperar pra ver a magia de Zharon com meus próprios olhos.

- Se você tem tanta paciência pra descobrir, não faz diferença se o garoto fez um pacto ou não. Um pouco de ajuda dos abissais seria bem-vinda pra nossa tribo.

- Não é você que determina o que é bem-vindo aqui ou não, ainda mais se tratando de assuntos que não compreende. Quanto mais poder um pacto oferecer, mais sacrifício ele irá cobrar e isso poderia significar o destino da nossa tribo.

- O destino poderia ser glorioso.

- Se dependesse de um pacto com os abissais ou da sua astúcia, o destino seria catastrófico.

Então o chefe se levantou e os dois interromperam a discussão imediatamente. Um passo de cada vez, ele se aproximou de mim. Cada pisada gerava um eco. Cada passo, ele parecia ainda maior. Quebraescudo parou a cinco passos de mim e eu pude perceber que nem alcançava seu tórax ainda.

- Zharon - sua voz retumbou. - Explique como derrotou sozinho seis orcs maiores do que você.

- Não foi sozinho. A terra me ajudou.

O silêncio indicou que eu deveria falar mais.

- A maioria não percebe, mas é óbvio pra mim. A gente não vive na floresta ou no pântano porque foi a caverna que nos escolheu. Ela nos protege e pode nos fortalecer, se prestarmos os devidos respeitos. A água, o ar e o fogo também são nossos aliados, mas nós não nascemos neles. Nós nascemos na terra e somos mais fortes quando somos gratos a ela.

O chefe me estudou por um longo tempo e retornou ao seu trono. Ao término de seus pesados passos, tudo era silêncio. Eu, Toruk, Necron e a própria pedra não ousávamos provocar nenhum ruído.

- Ele será seu aprendiz, Necron? - O chefe pronunciou num misto de pergunta e oferta.

- O garoto é abençoado, mas é uma bênção diferente da minha. Ele se comunica com a vida - e eu juro que os crânios sacolejaram provocando estalos muito parecidos com risadas. - Entretanto… Ele é útil. Pode ser uma arma. Pode inspirar nossas tropas e amedrontar nossos inimigos. E eu posso ensinar um truque ou dois ao nosso novo xamã.

- Zharon - a voz do chefe parecia uma trovoada. - Você será testado contra nossos inimigos. Caso prove seu valor, se tornará um guerreiro e irá clamar uma arma de combate dentre aquelas pilhadas em sua incursão. Tem algo a declarar, garoto?

E eu senti o peso do olhar daqueles três líderes. O peso da expectativa. Do desafio.

- Chefe, patriarca, capitão… - Prestei meu respeito a cada um daqueles guerreiros.

Olhei para cada um, para deixar claro que o desafio era bem-vindo. Naquela hora, eu queria lutar. E queria ir além. Queria quebrar os meus próprios limites. E quebrar nossos inimigos.

- ...Será uma honra.

***

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5 comentários:

  1. Gostei bastante do conto, um tanto diferente dos orcs que vemos em outros livros.

    Abraços

    naciadelivros.blogspot.com.br

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    1. Fico feliz que tenha gostado, a ideia é realmente criar algo original, mas ainda fiel ao conceito base.

      Obrigado pela força!

      Abração!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Me lembrou Warcraft, porém com orcs de Tolkien! Cheguei aqui através do grupo de Monster Hunter, quando sair continuação nos avise.

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  4. Amigo, show de bola e parabéns pela criatividade, estarei lendo os outros contos, forte abraco.

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