sábado, 30 de janeiro de 2016

Os Cinco Derrotados

Por que nós caçamos monstros enquanto ignoramos os tiranos da nossa própria raça?

- Cadê as nossas crianças? Vocês prometeram!

- Eu avisei que devíamos ter ido embora - Tallis, a elfa, protestou. Ela era mestra em escapar de problemas e nós tínhamos um dos graves. Que os Patriarcas Celestiais me perdoem, talvez ela tivesse razão.

- Como assim vocês encontraram a minha filha e não a trouxeram de volta?

- Não quisemos arriscar suas vidas, por favor, acalmem-se - Hector, meu companheiro de armas, estava com mais medo dos aldeões do que de qualquer orc que havia enfrentado.

- Acalmem-se? Eu não vejo o meu menino há três semanas e você quer que eu me acalme?

- Escutem! Eu sei que estão preocupados, mas não podemos arriscar, ou então tudo pode acabar sendo em vão. Nós vamos dar um jeito - se aquelas pessoas soubessem que Maxim adorava explodir bolas de fogo em cima de goblins, levariam a sério o fato dele ter recuado diante do que enfrentamos.

- Vão? Parece que vocês fugiram, isso sim!

- O patife usou os filhos de vocês como escudo humano - Petril, o anão, foi prático como sempre. Não importava se ele estava em mais uma de suas pregações pelo seu Patriarca Celestial da Justiça, se estava num combate, ou tentando acalmar aldeões, ele não sabia a hora de parar de ser sincero.

- Como assim? - Um dos parentes pareceu gelar.

Ninguém teve uma resposta imediata dessa vez.

- Seus filhos não estão perdidos e nem foram devorados por nenhum monstro do mato - eu comecei a explicar. Ou pelo menos tentei. - Eles foram raptados e el… Aquele… Aquilo está mantendo-os acorrentados e alegou ter usado uma magia. Disse que se atacássemos, as crianças sofreriam primeiro. Parece que as correntes transferem qualquer machucado pros prisioneiros e protegem o… O tirano.

Prantos. Lágrimas. Gritos.

- Pode ser um blefe e nós preferimos não arriscar! 

- Diga ao menos o que raptou os nossos filhos - uma das mães parecia ter tanta raiva da gente quanto do raptor. Ela estava prestes a pular no pescoço de alguém. Provavelmente o meu ou da Tallis. Aldeões enfurecidos sempre escolhem nós, mulheres, para intimidar primeiro, mesmo que eu carregasse minha espada, vestisse minha armadura e erguesse o símbolo sagrado da Esperança. - Uma bruxa? Um maldito elfo sombrio? Um vampiro? - Ela já fechava os punhos. O que pensava em fazer? Acertaria um soco no meu rosto? E depois?

Eu e meus camaradas nos entreolhamos por um momento. Era difícil responder essa pergunta em particular. 

- Não, nada disso. Foi um humano. 

Como nós.

O silêncio se espalhou como uma doença febril ao nosso redor. Talvez por excesso de perguntas. Ou pela desorientação total. 

Até que alguém perguntou:

- Por quê?

E essa era a pior pergunta de todas. 

Passamos tanto tempo caçando monstros que esquecemos a nossa própria capacidade de sermos cruéis. 

- O que vocês vão fazer?

Também sem respostas.

Havia uma opção. Uma oferta. Mas nenhum de nós tinha coragem de contar esse detalhe.
Pensávamos que seríamos heróis. E lá estávamos: cinco derrotados.

- Tem alguém vindo pela colina! - Um dos aldeões anunciou. 

Não podia ser. Ele não faria aquilo.

Eu e meu grupo corremos à frente. Minhas pernas tremiam tanto que eu pensei que iria tropeçar. Paramos nos portões do vilarejo e avistamos nosso pior pesadelo. Eles. O raptor e as nove crianças acorrentadas. Não mais de cem metros de nós. Um sorrindo. Nove sem forças para qualquer coisa além do lamúrio. Dezenas chorando aos gritos. Cinco derrotados.

- Pensei que iriam ficar felizes em nos ver! - Um largo sorriso com pequenos dentes acinzentados se fazia visível mesmo à distância. - Então? Os heróis vão aceitar a minha proposta ou vão me obrigar a sacrificar esses pequenos celestiais aqui?

- Proposta? - A palavra ecoou ao nosso redor. Não havia mais volta.

Todos os olhos estavam em nós. Ele esperou. Eu sentia apenas o suor escorrendo pela minha têmpora. 

Para ser sincera, a minha decisão era a mais fácil. Eu havia sido designada por um juramento, meus aliados não. A parte difícil era vê-los encurralados. 

- Proposta? - Um pai perguntou com firmeza dessa vez.

Respirei fundo.

- Ele ofereceu libertar a criança, se nós cinco nos entregarmos em troca - eu finalmente declarei.

Bonança.

E tempestade. 

- O que vocês estão esperando?

- Não me diga que vocês vão recusar?

- São os nossos filhos!

- A gente não pode obrigá-los a isso!

- Que se dane, eu quero o meu filho de volta!

- Nem que eu precise entregá-los com as minhas próprias mãos!

- Meu filho!

- Chega! - Não contive o urro.

Olhares de luto. Olhares de desprezo. Olhares de desafio.

- Eu vou me entregar. E vocês?

Sacrifício. Revolta. Desespero. Dúvida. Esperança.

- Você tem certeza? - Hector sempre dissera que iria conosco até o fim. Curiosamente, ele sempre falou isso olhando nos meus olhos.

- Tenho.

- Então eu vou também.

- Nós vamos pro Abismo de uma forma ou de outra, que se dane. Vamos - Petril parecia resiliente até o fim, como uma rocha que finalmente cede à chuva.

- Eu só não achava que nossa jornada terminaria tão cedo… Mas eu estou com vocês - Maxim nunca pareceu tão perdido.

Tallis rangia os dentes tentando segurar as lágrimas inutilmente.

- Eu odeio vocês. Eu nunca vou perdoá-los.

Tentei colocar a mão em seu ombro e ela me afastou com um tapa. 

- Eu sabia que vocês não iriam desapontar esses pobres aldeões! Muito bem - o raptor batia palmas com suas pequenas mãos enrugadas. - Agora larguem as armas e venham um por um. Como eu sou generoso, vou soltar duas crianças por vez - ele regozijava a vitória.

- Porco! - Tallis berrou.

- Em breve estará me chamando de imperador, vadia - o sorriso já era onipresente.

Maxim largou seu cajado e começou a andar. Passos ligeiros para alguém que transbordava medo. O raptor - ou já deveria chamá-lo de imperador - lentamente libertou duas crianças. Mesmo desnutridas, elas encontraram forças para correr para suas famílias. Talvez fosse a fagulha de esperança renascendo. Talvez tudo aquilo tivesse um propósito, afinal.

O feiticeiro se manteve ereto enquanto encarava nosso odiado inimigo. Não que tivéssemos muitos. Provavelmente faríamos mais depois daquelas correntes. Aquele ser asqueroso pegou uma das argolas e, saboreando cada segundo, encoleirou meu amigo. O nojento estremeceu com o momento, enquanto os joelhos de Maxim murcharam e sua postura se esvaiu. Poderia ser o efeito mágico dominando meu pobre amigo. Poderia ser apenas um tirano doentio degustando seu fetiche.

Petril foi em seguida, praticamente marchando. Era o único mais baixo que o raptor e mesmo assim era inegavelmente maior em força e caráter. Ao ser acorrentado, ele não cambaleou como o mago. Em vez disso, ele estagnou. Não como uma estátua rígida, mas como um corpo catatônico. Seus olhos para o chão. Sua respiração mínima. Mórbido. Mais duas correram. Mais dois sorrisos voltando das sombras. Mais um bravo herói esmorecendo.

A expressão de Tallis enquanto se entregava era como lâminas sedentas por dilacerar uma vítima. Ela não deixou de encarar a mim e ao Hector pelo trajeto com o mesmo rancor que tinha pelo tirano. Ela fez o máximo para conter as lágrimas, até encontrar os grilhões. Seus joelhos foram ao chão e os lamentos ecoaram para além dos portões. Ela provavelmente era a mais forte de nós, pois seus berros exigiam fôlego que ninguém encontraria naquele momento. Eu começava a me questionar se um dia aquele sentimento iria, ao menos, anuviar. Mais duas crianças soltas. Mais dois motivos para eu ter certeza que havia feito a escolha certa. Mais uma argola. Tallis não era a única que nunca iria perdoar. Eu compartilhava sua indignação.

Dei um passo, mas Hector me segurou. Eu quis implorar para ir primeiro, como se fizesse alguma diferença. Então ele estava decidido. Firme como um soldado de vanguarda. Firme por fora, louco por dentro, como apenas os guerreiros à beira de uma missão suicida conseguem ser.

Seu caminhar foi quase suave. Ele era estranho sem suas armas. E nunca esteve tão natural. Parecia ser o único em paz. 

Mais duas crianças. Menos um justiceiro. O único que não nublou com os grilhões. 

Só faltava uma criança. Só faltava uma derrotada.

- Nós nunca vamos esquecer de vocês - alguém conseguiu gaguejar entre as lágrimas. 

E como o mundo lembraria de nós? Como os escravos de um tirano? A guarda de elite de um louco? Como os trágicos opressores? Quantas vidas iríamos tirar depois de salvar aquelas nove?

Eu me sentia vazia como um fantasma. Já era um mero espectro antes mesmo de encontrar as correntes. Aqueles dedos fétidos tremiam de antecipação. Ele mal via a hora de concluir sua primeira vitória. Não mais iria usar crianças como escudo humano. Iria usar aventureiros, que iriam ter que matar outros aventureiros para sobreviver e logo seriam substituídos por mais derrotados quando morressem.

A última criança correu. Era bela como uma garça viajando para o horizonte. O raptor não tinha pressa em sua realização.

De frente para os grilhões, pude ter certeza: eram amaldiçoados. As correntes pareciam escurecer o mundo ao seu redor. Pareciam absorver a luz e as esperanças. Tudo próximo aos seus elos escurecia e silenciava. E a argola parecia querer o meu pescoço como um ímã. Ou como o vácuo. 

Maxim parecia arrependido. Tão poderoso ao dizimar dezenas de adversários com um único encanto, tão frágil diante da derrota mais patética que nenhum de nós poderia imaginar. Petril estava imóvel, infértil. Tallis parecia ter arremessado a sanidade para o mais longe possível com os seus gritos. Talvez estivesse ansiosa para que todos nós morrêssemos. Ansiosa para ela mesma morrer. Com sorte, levar o tirano junto. E Hector… Meu Hector. Ele estava determinado. Eu conhecia aquele rosto de quem sabia que tudo daria certo. 

Foi quando eu entendi.

Hector havia planejado aquilo desde o começo, pois sabia que só eu teria a coragem. Que maneira mais amarga de vencer o meu companheiro de armas…

Era hora de começar o fim. Era o meu dever.

Com um soco bruto na garganta, eu joguei o corpo do tirano no chão enquanto o pescoço de Maxim se contorceu e o feiticeiro caiu inerte na grama, confirmando os poderes da corrente. O primeiro de nós teve que morrer antes de eu conseguir eliminar o raptor. 

De fato, não havia mais volta.

- Não! - Tallis pulou em cima de mim e nós duas rolamos no chão. As mãos dela tentavam agarrar meu pescoço enquanto eu tentava empurrá-la para longe.

- Cura! Cura! Cura, seu clérigo estúpido! - Petril estava confuso. Não posso culpá-lo. Foi tudo rápido demais. Óbvio que todos tínhamos nossos questionamentos, os dele viriam mais cedo ou mais tarde, mesmo que fossem em seus momentos finais. - Cura, seu filho da puta! 

Consegui arremessar Tallis para a esquerda, me levantei, mas ela não havia sido arremessada, ela havia se deixado esquivar para me estrangular pelas costas. Sem ar e com o peso da elfa contra a minha traqueia, eu voltei para a grama.

O tirano agarrou as mãos de Petril e colocou no próprio pescoço, implorando por algum milagre que curasse. Aparentemente, parte do soco havia atingido o maldito. E finalmente o clérigo voltou a si e fez o que tinha que fazer: torceu o pescoço do nosso odiado inimigo e tombou para trás, corpo para o céu, rosto no chão.

Consegui afrouxar o antebraço de Tallis por um mero momento, o suficiente para pegar algum ar e sentir a pressão no cérebro se regulando, mas é difícil derrotar alguém que sabe que está prestes a morrer. Eu estava num equilíbrio extremamente delicado entre segurar o fôlego para não desmaiar e tirar a minha antiga camarada das minhas costas. 

Foi quando o engasgo veio. Uma tentativa de tossir suprimida pela pressão. O corpo amolecendo. Eu finalmente voltando a respirar, engolindo ar enquanto meus pulmões clamavam por vida. O corpo de Tallis desfaleceu e tombou atrás de mim. E Hector começava a ficar roxo enquanto estrangulava o imperador com as próprias correntes.

- Não… Não… Seus idiotas… Não… - Aposto que era muito mais fácil discursar na vitória do que na derrota, ainda mais com uma corrente no pescoço. 

- Perdão - Hector balbuciou e começou a perder a consciência.

E eu agarrei a corrente para garantir que a missão fosse concluída. Pressionei o pescoço do raptor enquanto meu camarada sufocava em seu lugar. 

- Não… - Aquele ser asqueroso tentou mais uma vez.

Eu nunca iria perdoar. Nem o tirano, que conseguiu arruinar tantas vidas mesmo em seu fracasso. Nem o vilarejo, que trouxe esse azar sobre eu e meus amigos. Nem Hector, por não ter tido coragem de me deixar ir na frente e morrer em seu lugar. Nem a mim mesma. Especialmente a mim mesma. 

Encerrando a vida de um tirano. Sentindo a vida de um monstro desalentar em minhas mãos. Meu maior ato de sacrifício, meu maior ato de impotência. 

Um filete de sangue escorria pela boca do meu amado, enquanto lágrimas e suor encharcavam o maior vitorioso do dia. 

Eu puxei as correntes e seus olhos reviraram. 

Eu apertei mais e a língua projetou por entre os dentes. 

Eu forcei ao máximo e o pescoço se dobrou num ângulo inumano.

E eu puxei mais. 

Apertei mais. 

Forcei mais. 

Foi tudo muito rápido. 

Tudo demorou uma eternidade. 

Não havia volta.

Até que os meus braços desabaram de cansaço e meus ombros penderam, mal sustentando o meu rosto.

E eu chorei em luto.

E rezei em angústia.

E implorei por perdão.