segunda-feira, 27 de julho de 2015

00: Brumas (Parte 3 - Final)

Ele vestia incontáveis camadas de tecido vermelho e laranja, ombreiras largas e todas as joias que o corpo pudesse sustentar. Brincos, colares, anéis, pulseiras e até um chapéu ridículo. Seu rosto era flácido, seu bigode fino era ridículo e sua maquiagem estava toda borrada de tanto suor. Antes que eu pudesse entrar na sala, ele já estava lendo um pergaminho mágico.
Um ponto do chão começou a se abrir em fogo e uma mão surgiu estourando a madeira queimada. Enquanto as chamas se espalhavam, a criatura não esperou o terreno abrir e quebrou o piso com socos até conseguir erguer seu corpanzil. O que se revelou era um abissal humanoide de mais de dois metros e meio de altura, pele vermelha, presas afiadas, três olhos na face, equipado como um verdadeiro samurai: armadura de placas, um robe ornamental e uma katana do meu tamanho, que ele empunhava como se fosse uma espada comum.
Antes que eu pudesse avançar, ele fez um gesto elaborado com a mão e uma barreira de chamas surgiu aos meus pés indo de encontro ao teto, me obrigando a dar uma cambalhota para não ser engolido. Assim que terminei de rolar no chão, ergui meu escudo no último momento para bloquear seu ataque e não ser partido ao meio. Mesmo tendo escapado da morte, o seu olho central soltou uma rajada de fogo no meu braço esquerdo, quase incendiando o couro por debaixo das placas de metal.
- Não queime minha casa, seu idiota! - O meu alvo esbravejou com o abissal.
Num único movimento, empurrei sua katana gigante para cima com o escudo e estoquei minha espada em seu estômago, sentindo a ponta encostar na placa de metal das suas costas. Subitamente, seu pé foi de encontro ao meu peito e eu fui jogado a poucos centímetros da muralha de chamas atrás de mim. Como se não bastasse, a rajada de olho pegou na minha perna, ardendo absurdamente.
O abissal começou outro gesto arcano e eu rolei no chão para não ser atingido pela bola de fogo que explodiu o piso de madeira. Por muita sorte, ele mirou a rajada do seu olho no mesmo ponto da bola de fogo e eu fui poupado de mais queimaduras.
Levantei-me e bebi a única poção que não havia se espatifado no chão, sem nem me importar com qual seria o efeito - qualquer ajuda seria bem vinda.
No momento em que eu senti o meu corpo se aquecendo com a magia, levei mais um chute e fui jogado dentro da muralha de chamas, que já havia aberto uma fenda no teto e começava a espalhar fumaça e fogo por todos os lados. Mas eu não senti nada, além de um suave calor.
Investi numa estocada em seu abdômen novamente, que já estava quase cicatrizado do golpe anterior. Se ele podia regenerar suas feridas, tudo bem, eu podia abrir de novo. Encravei a espada tão fundo quanto antes e girei abrindo caminho pela lateral da sua barriga, fazendo-o urrar. Quando sua lateral se abriu, uma labareda esguichou em vez de sangue. Abissais eram mesmo criaturas interessantes.
Seu olho central despejava fogo em mim com fúria, mas a poção me protegia - por um tempo. Meu informante, afinal, fez bem em me precaver de que o sacerdote gostava de magias de fogo - e a sorte me reservou justamente a poção que eu mais precisava naquela hora. Sua katana gigante descreveu um arco horizontal no ar, me obrigando a me agachar. Aproveitei a posição e impulsionei uma estocada contra o seu peito. Sentindo a lâmina perfurar sua armadura e seu tórax, desci os braços, abrindo um corte generoso em seu torso e espalhando chamas pelos nossos pés.
Ele tentou usar o cabo da sua arma contra a minha cabeça, eu desviei e senti uma contusão grave em meu ombro, que teria me desmaiado, se tivesse acertado onde ele queria. Antes que eu me preparasse para o próximo ataque, ele girou a katana na altura das minhas pernas e eu pulei o mais alto que eu pude, evitando o desmembramento por pouco.
Ainda no ar, acertei o seu ombro e desci ao chão com todo o meu peso, abrindo uma fenda até o seu peito. Minha espada estava vermelha de tanto fogo que expelia de dentro dele e eu tive que dar um encontrão com o meu escudo para conseguir arrancá-la da ferida. Suas incessantes rajadas de fogo pelo olho continuavam a me acertar e, aos poucos, estavam queimando de novo. Logo o efeito da poção acabaria e eu não sobreviveria tendo que enfrentar sua espada e seus feitiços.
O teto estalou acima de nós e eu não iria arriscar ficar parado. Dei uma cambalhota por entre as suas pernas, quase fui empalado pela sua katana no meio do caminho e ouvi o chão atrás de mim estourar com a queda de uma tora incandescente.
Antes que ele pudesse girar seu corpanzil, desferi um golpe horizontal na sua costela. Quando ele ergueu sua katana gigante para me atacar, desferi outro golpe horizontal na sua axila. Quando ele cambaleou, não conseguindo regenerar tantas feridas ao mesmo tempo, trespassei seu pescoço.
Quando sua cabeça caiu no chão, ela já era uma bola de chamas. Logo, todo o seu corpo incendiou, mas não explodiu. Pelo contrário, todo o fogo que ele gerou perdeu força e, aos poucos, começou a apagar, deixando apenas todo o quarto e metade do corredor completamente destruídos como lembrança.
Olhei para trás e o meu alvo já estava correndo para longe antes mesmo do corpo da sua invocação se dissipar.
Peguei meu arco, mirei uma flecha e atravessei sua panturrilha direita, derrubando-o no gramado. Ele ainda se rastejava quando eu me aproximei.
- Cadê o pergaminho do Sexto Selo?
- Você não pode fazer isso comigo.
Um chute no seu estômago. Enquanto se contorcia de dor no cão, meu alvo manifestou sua verdadeira essência. Lamentável. Digna de pena. Alguém incapaz de fazer qualquer coisa sozinho. Mal acostumado a estar cercado de luxos e proteções, indefeso feito um inseto gordo quando está sozinho.
- Eu já fiz, agora me entregue ou morra.
- Eu tenho amigos, sabia? Eles não vão deixar isso barato.
- Ninguém vai procurar por você amanhã e nem nunca. Vão saquear tudo que é seu e vão agradecer a sua morte. Agora me entregue o pergaminho.
Ele me olhou com lágrimas nos olhos. Patético.
- Poderei viver?
- Tente a sorte.
Ele enfiou a mão numa das camadas de roupa e me entregou um cilindro de ouro. Abri, puxei o canudo de pergaminho, desenrolei e li um trecho. O idioma ainda era estranho para mim, mas nada que eu não pudesse decifrar com calma. Guardei tudo na minha algibeira e me voltei ao meu alvo.
- Você já leu isso, não? - Questionei.
- Já sim - ele gaguejou.
- O Sexto Selo é uma espada, não é?
- É o que diz aí.
- E também é um portal, certo?
- Todos os Sete Selos são portais. Se forem dominados ou destruídos, trarão hordas abissais ao nosso mundo. Você pensa que consegue alcançar esse Selo?
Dei de ombro.
- O Sexto Selo é muito especial, na minha opinião - ele prosseguiu, se esforçando para disfarçar a careta de dor. - Deve ser a arma mais poderosa do mundo, imagine só. Acha mesmo que consegue roubá-la do Templo Esquecido? E depois? Vai chantagear o mundo e se tornar o maior dos reis? Vai dizimar reinos com um exército de abissais? Vai fazer contato com os próprios Males Primordiais?
- Sabe de uma coisa? Você não merecia esse pergaminho. Tantas informações preciosas e você nunca usou nenhuma delas.
Ele tentou rir, mas a flecha em sua perna o fez lembrar da sua situação.
- Não encontrei um comprador bom o suficiente. Mas posso patrocinar a sua jornada.
- Você pensa pequeno pro meu gosto.
- O-o-o quê?!
- Se esse pergaminho for mesmo o original, você teve a maior fonte de conhecimento registrada do Sexto Selo em suas mãos e nunca se deu conta de uma coisa muito simples.
Os olhos dele misturavam indignação e curiosidade - e agonia.
- Portais não são só um caminho de saída. Também são um caminho de entrada.
Seus olhos se arregalaram.
- Você quer entrar no Abismo? Quem seria louco o suficiente pra isso? - Ele gaguejou.
- Isso faz diferença pra você?
- Isso pode fazer diferença pra todos os seres vivos do mundo.
- Justamente. Pros vivos.
E cortei a sua cabeça.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

00: Brumas (Parte 2)

Ela trajava robes vermelhos e brancos, entrelaçados de forma complexa. Seu cabelo era ornamentado com pentes prateados e seu rosto estava completamente maquiado em branco, com lábios e olhos em vermelho e uma listra ondulava de uma maçã do rosto a outra, passando pelo nariz, num tom escarlate. A maquiagem era tanto ostensiva quanto ritualística - digno de uma sacerdotisa de Azathallas, o Lorde da Ganância.
Seus olhos vacilaram para o leque em sua mão, provavelmente escondendo algo.
- Saiba que o meu código de conduta não faz distinção entre homens e mulheres.
Ela me encarou. E sorriu.
- Eu mato apenas aqueles que se interpõem em meus objetivos e aqueles fortes o suficiente para merecerem ser desafiados - prossegui. - Suas magias são notáveis e eu receio que você se encaixe no último critério.
- Eu vou facilitar as coisas pra você - ela proferiu antes de ficar invisível.
Tentei me concentrar em seus passos. Ou ela não saiu do lugar ou era leve como uma aranha.
- Sua força de vontade me impressionou. Poucos resistem a uma ilusão minha. Duas, então, surpreendente. Como não sou uma assassina, minha missão de proteger o templo já falhou, pelo visto.
- Onde estão os outros clérigos? - Interroguei.
- Clérigos? Esse seu idioma é rústico e bruto. O termo shugenja é mais apropriado.
- Pergunte à minha espada se eu me importo com o termo mais apropriado.
- Pra sua sorte, só sobrou um shugenja além de mim.
- O seu mestre.
- Sim, aquele porco.
Foi minha vez de sorrir.
- Eu só quero o pergaminho do Sexto Selo. Entregue-o e ninguém mais morre.
- Pergunte às minhas ilusões se eu me importo com quantos ainda vão morrer nesse templo.
- Então me entregue o pergaminho e a gente encerra isso.
- Não está aqui. O templo é apenas a coleção pessoal do meu mestre. As peças que ele gosta de expor. Seus pertences mais estimados nunca ficam longe dele.
- Você era leal quando ele te mantinha por perto? - Eu me diverti.
- Eu era leal enquanto havia outros shugenjas para liderar.  
- Ambiciosa.
- Gananciosa, pra ser mais exato. E não vou ficar servindo alguém com menos potencial do que eu. Ainda mais enquanto ele perde seus poderes.
- Perde, é?
Uma risada suave ecoou pelo templo.
- Ele estagnou. Está concentrando suas conquistas, em vez de expandindo. A Ganância não gosta de ser trocada pela Tirania. E a Tirania exige muita devoção antes de ceder poderes. Como o idiota nem percebeu o quanto seus hábitos mudaram nos últimos tempos, seu poder enfraqueceu. Aposto que ele mesmo nem reparou nisso.
- Mas você, como uma legítima sacerdotisa, percebeu.
- Você vai lembrar de mim quando eu me tornar sumo sacerdotisa.
- Bom pra você. Onde está o meu alvo?
- Ele sempre se esconde na Casa de Recepção.
- E o pergaminho está com ele?
- E se eu quiser o pergaminho também?
- Não acha melhor você ficar com tudo no templo, menos a única coisa que eu quero?
Um breve momento de silêncio.
- Qual é o seu interesse no Sexto Selo?
- Os Selos, como tudo de podre que existe nesse mundo, foram criados por mortais.
- E…?
- E nenhum mortal faz nada sem um interesse próprio. Talvez o criador do Sexto Selo tivesse interesses parecidos com os meus.
- Olha só… Tantas pessoas querem proteger os Selos… Outras querem destruir… E você quer usá-lo?
Foi a minha vez de rir.
- A Casa de Recepção é a menor, que fica mais próxima do muro norte, né?
- Essa mesma.
- Obrigado.
E me retirei do templo.
Caminhei pela ponte até o caminho de pedras, contornei o lago e segui pela torre de vigilância oeste. Um único guarda estava tentando se esconder e eu apenas olhei em seus olhos para que ele jogasse o arco fora e se encolhesse lá dentro. Havia um muro interno com portões ao lado da torre, devidamente abandonado pelos desertores.
Logo depois do lago, mais um muro e mais postos de vigia cercavam as duas casas. Sem obstáculos, entrei pelo portal. À esquerda, um caminho levava para um jardim interno, com mais árvores e lagos, uma obra de artes de um homem muito rico. As casas eram grandes, uma de três andares e outra com apenas um. Pintadas em branco e marrom, com telhados pontudos, varandas espaçosas e gárgulas de pedra em formato de ogros.
Boa parte da Casa de Recepção era cercada por paredes de papel, então eu simplesmente rasguei o meu caminho até uma sala de estar - que por si só já era mais ornamentada do que os aposentos de muitos nobres. Sem perder tempo, rasguei mais uma passagem e cheguei a uma sala retangular com uma mesa rasteira, almofadas e armaduras e espadas decorativas. Segui pela direita e entrei num corredor. À minha esquerda, um pátio interno, à minha direita mais uma sala de estar. Continuei explorando, passei por uma sala de chá à esquerda e por um quarto de hóspedes à direita. Mais alguns passos, um camarim à minha esquerda e uma sombra por detrás da parede de papel à minha direita.
Um samurai pulou com a espada em punhos e tentou um golpe de cima para baixo, acertando o chão enquanto eu dei uma cambalhota para frente.
- Devia ter fugido com os outros - lamentei.
- Sua morte será a minha fortuna - ele se iludiu.  
O cavaleiro tentou um golpe horizontal, que encontrou o meu escudo, uma estocada, desviada pela minha lâmina e mais um ataque de cima para baixo, que teria acertado o chão, se eu não tivesse trespassado o seu abdômen antes. Caiu o infeliz para um lado e a espada para o outro. Fácil.
E dentro da sala, o meu alvo.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

00: Brumas (Parte 1)

A neblina é pior do que as trevas, pois faz seus olhos acreditarem que estão enxergando.

Disseram que o Leste Radiante era uma terra mágica, com belas árvores de cerejeira, música e poesia das mais refinadas e filosofias e conhecimentos ancestrais. Mas, afinal de contas, era apenas mais um pedaço de terra decadente como o resto do mundo.
E eu estava diante do maior exemplo disso: o templo de um sacerdote opulento. O território era todo cercado por um rio de cinco metros de largura e muros de três metros de altura, uma torre pequena de múltiplas beiradas vigiava cada sentido cardeal e apenas três pontes davam acesso ao palácio que o suserano local chamava de mosteiro. Dentro, árvores, lagos, uma dúzia de casas menores, mais algumas torres de vigia, vários muros, três construções principais e incontáveis guardas - é lógico.
A cinquenta metros dos muros, eu comecei os preparativos. Espada e arco a postos. Escudo nas costas por enquanto. Poções mágicas devidamente preparadas. Sete ao todo. Foram caras, nada que um punhado de joias do sacerdote não pagasse. Se as informações que eu comprei estivessem certas, ainda sobrariam algumas depois da incursão. Se não, a fuga também estaria garantida e o meu próximo alvo estaria marcado.
Hora de começar.  
Bebi duas poções de uma vez só e senti o meu corpo todo estremecer com seus efeitos. A primeira ardia na garganta e a segunda era quase enjoativa de tão doce. Imediatamente senti meus músculos se retesarem, os pelos da nuca se arrepiarem e a adrenalina subir. Era como se uma corrente elétrica circulasse dentro de mim. Olhei para minhas manoplas e elas já estavam transparentes. Num instante, eu olhei minha armadura de combate, minhas botas de metal, as ombreiras e só vi o chão abaixo de mim. Olhei para o meu destino. E corri.
Minha armadura de aço era pesada, mas os anos de experiência tornaram-na confortável, nada além de um pequeno contratempo. As lendas contam histórias de guerreiros que dominavam o campo de batalha como se fossem feitos de armaduras e espadas. E eu estava prestes a me tornar uma lenda.
Com passos largos impulsionados pela poção e invisível como um fantasma, eu avancei como uma flecha, saltei pelo rio e fui de encontro ao primeiro muro. Agarrei seus tijolos de pedra como se as manoplas fossem confortáveis como as minhas próprias mãos e comecei a escalar. Um dos guardas da ponte de acesso olhou na minha direção, mas estava longe demais para achar que o barulho da armadura contra o muro fosse mais do que sua imaginação. Sem dificuldades, ultrapassei o primeiro obstáculo e invadi o jardim.
O lugar era bonito, tenho que confessar. Bonito de forma que apenas muito dinheiro podia sustentar.  O caminho era demarcado por uma estradinha de pedras cercada por árvores e arbustos. Apenas dois guardas passavam por perto e eu deixei que eles se distanciassem até começar a andar. Mesmo invisível, minha armadura era irremediavelmente barulhenta.
Quando ficou seguro, avancei até a ponte que dava acesso à ilhota do templo principal. O local de adoração ficava estrategicamente cercado por um lago com um único acesso. O isolamento era justificado pela paz e pela harmonia. Os quatro guardas na ponte e mais os dez no jardim do templo é que não tinham explicação, além da fortuna guardada lá dentro.
Eu não precisava de mais do que vinte metros para acertá-los. Eles morreriam de forma rápida. E ainda dizem que não existe piedade entre os matadores.
Saquei o arco, posicionei a flecha, mirei o peito do primeiro guarda e respirei uma única vez. Depois que começasse, não poderia parar. Sentir a mandíbula pressionando era inevitável nesses momentos. Antes da primeira flecha chegar ao alvo, eu já estava posicionando a segunda e ajustando a mira. Quando o primeiro guarda se desequilibrou, já sem vida com a flecha no coração, a segunda seta atravessou a garganta do outro. Um corpo no chão, outro desabando e a terceira flecha se encravou no meio do rosto do penúltimo guarda da ponta, uma cena nada bonita, confesso. O último guarda ficou pálido com a cena. Eu não podia perder tempo mirando com precisão, então acertei uma flecha no seu estômago e avancei pela ponte.
Óbvio que os guardas do jardim viram as mortes. Seus olhos, geralmente estreitos e amendoados, estavam arregalados e eu não sabia se eles gritavam ordens ou pedidos de socorro. Aproveitei os últimos segundos das poções e distribui flechas nos guardas. Dos dez, dois tiveram tempo de correr para dentro do templo e um eu deixei viver porque estava soando a corneta. Quando as primeiras guarnições chegaram correndo e o corneteiro tentou fugir, eu disparei uma última flecha em seu ombro. Ele viveria para espalhar aos outros guardas que uma ameaça invisível estava espalhando morte.
Vários guardas saíram de dentro do templo, talvez vinte, espadas em guarda e medo estampado no rosto. As guarnições cercaram o lago com arcos, mas o excesso de árvores na ilhota seria cobertura o suficiente para que nenhum deles tivesse competência de me atingir.
Cinco cavaleiros se juntaram aos guardas do templo. Quatro deles usavam armaduras lamelares, feitas com pequenas placas retangulares atadas em filas horizontais. Bem primitivas. O líder usava uma armadura de verdade. Não era aço puro como a minha, mas se dividia em placas e escamas. Enfeitada demais para o meu gosto, cheia de brasões e uma máscara simulando uma bocarra no elmo. Eles chamavam a si mesmos de samurais, se não me engano.
Suas espadas inspiravam algum respeito, ao menos. Lâminas longas e levemente curvas. Aparentemente afiadas até a alma. Quanto será que valeriam nos reinos do oeste?
Enfim, as poções começaram a perder o efeito. Peguei mais uma e bebi enquanto meu corpo desacelerava e ficava visível. Senti meus músculos incharem. Tudo. Braços, pernas, ombros, pescoço. Quando todos puderam me ver, eu já estava com o arco nas costas e a espada e o escudo nas mãos.
O idioma deles ainda era confuso para mim, mas pude entender palavras como “bruxo” e “abissal”. O líder começou a comandar sua pequena tropa. Poucos estavam livres do medo. Seria fácil.
Eles vieram num grito quase uníssono. Aparei um golpe com minha espada e bloqueei outro com o escudo. No momento seguinte, minha arma dançou pelos seus abdômens e ambos caíram. Deu para ver a cara de arrependimento do guarda que se aproximava antes de eu estocar contra o seu tórax. Um infeliz tentou se aproveitar da minha guarda aberta, mas eu fui mais rápido e cortei sua garganta no mesmo movimento em que retornei à posição de defesa.
Mas uma leva, dessa vez acompanhada de um dos samurais. Tudo o que eu precisava. Evitar os golpes dos guardas foi fácil, eu quase não precisava me concentrar neles. No instante em que o samurai preparou sua estocada, todos os seus próximos passos ficaram óbvios. Ele estendeu os braços com ímpeto, eu girei minha lâmina contra a dele e subi num corte diagonal contra o seu torso. Ele quase se partiu ao meio.
Os guardas que não correram se reagruparam atrás dos quatro samurais restantes. Não tinha mais do que meia dúzia agora. Ao longe, gritos como “fujam”, “morte” e “desisto” se espalhavam. Olhei por entre as árvores e os arqueiros que não estavam me esperando do outro lado da ponte também haviam fugido.
- Até quando vai mandar seus homens morrerem no seu lugar? - Perguntei ao líder.
Ele entendeu o meu idioma.
O samurai devia ter o meu tamanho e sua armadura parecia um pouco mais leve e um pouco menos resistente que a minha. Seus olhos eram determinação pura. Talvez o único tolo o suficiente para ter alguma honra por trás da armadura bonita. Era até um desencargo de consciência matar um homem que não fugiria nem diante da morte iminente.
Ele marchou em minha direção numa linha reta, ergueu a espada acima da cabeça, inflamou os olhos e gritou enquanto desceu sua arma contra a minha cabeça rápido demais para que eu pudesse aparar o golpe ou contra-atacar. Para sua infelicidade, não rápido o suficiente para desviar e eu já estava um passo ao lado quando ele acertou o gramado e a minha espada já estava girando em direção à sua nuca quando ele começou a ajustar a sua guarda. Observei sua cabeça rolar no chão decepcionado. Foi fácil demais.
Os outros três samurais e o punhado de guardas já haviam atravessado a ponte quando eu caminhei para dentro do templo. Se era verdade que esses cavaleiros juravam lutar até a morte, homens de palavra estavam em falta até no leste.
Quando dei meu primeiro passo no piso de madeira, ele virou lama. Meus pés afundaram e tudo ao meu redor se transformou. Os pilares viraram árvores finas e retorcidas, o altar virou um pedregulho e as paredes viraram neblina. À minha frente, uma figura esguia, coberta de pelugem negra, com um par de asas enorme e rosto parecido com o crânio de um equino me aguardava.
Minha primeira reação foi estancar diante da figura macabra. A segunda foi olhar novamente ao meu redor. Eu sabia que não estava num pântano. O cheiro de incenso ainda era forte, bem destoante da lama nos meus pés. Eu sabia que aquilo era um templo. Não havia porque eu enxergar qualquer coisa diferente. Então, a ilusão, aos poucos, se dissipou. O chão de madeira, os pilares, o altar, as paredes e as incontáveis estatuetas de ouro e incensos aromatizantes se tornaram reais. E uma mulher me encarava no lugar do monstro de antes.