domingo, 28 de fevereiro de 2016

Irmãos (Parte 5)

Goblins parecem se multiplicar a cada um que morre e isso é odioso. Eu e Gladius estávamos de costas um para o outro e não parávamos de atacar nem por um segundo. Eu já havia matado uns três e mais cinco vinham me cercando.

- Então, Draco, ainda prefere uma viagem monótona?

- Espero que eles quebrem a sua perna.

Goblins tinham cerca de um metro de altura, pele cinzenta colada nos ossos, nariz achatado, aspecto bastante sujo e gritavam sem parar exibindo dentes deformados e pontiagudos, pareciam até cacos de vidro. Vestiam armaduras de couro incompletas e usavam armas precárias. Um me atacou com uma maça estrela e foi detido pelo meu escudo, dois foram tão mal sucedidos na investida que eu os ignorei e os outros dois ainda não haviam me alcançado. Girei minha espada pela lateral e um caiu no chão instantaneamente. Dos dois que finalmente se aproximaram, um tropeçou e caiu aos meus pés e eu não perdi a oportunidade de enfiar minha lâmina em suas costas ali mesmo, garantindo que não levantasse. Bloqueei mais um golpe com meu escudo, aparei uma pequena espada com a minha e um machado feito de pedra lascada bateu em minha caneleira sem surtir nenhum efeito. Abri o abdômen de um dos goblins e dividi o tórax de outro em dois num único golpe giratório. O último se viu sozinho e tentou fugir, mas foi interceptado pela minha lâmina e tombou após dois passos, inerte.

Ouvi um grito de Gladius, olhei para trás e parecia que minhas palavras se realizaram. Ele estava de joelhos no chão com uma das pernas sangrando generosamente e um goblin urrava satisfeito com uma lança ensanguentada em punhos. Encerrei sua comemoração com um golpe horizontal que o decapitou de uma vez só e meu amigo levantou num salto, impedindo que eu atacasse mais um dos nossos oponentes.

- Você ainda tem trabalho a fazer, eu cuido desses.

Eu insistiria, mas vi sete goblins correndo em minha direção e ouvi mais um número indefinido vindo para Gladius. Pareciam ser a última leva desesperada. Preparei-me e assim que o primeiro se aproximou, girei minha espada na diagonal, de baixo para cima, e ele foi jogado para trás, sangrando e em silêncio. Quatro vieram ao mesmo tempo, bloqueei, aparei com a lâmina, esquivei com uma finta, mas o ultimo conseguiu abrir um corte no meu braço esquerdo com uma adaga. Chutei um deles para longe para ganhar espaço e estoquei no pescoço de mais um, deixando sua cabeça pendurada no corpo por apenas um filete de carne e pele. Os outros dois vieram fazendo muito barulho, nada ameaçador, e foram recebidos pelo meu escudo e pela minha armadura. Enquanto aquele que eu havia chutado se levantava, abri outro pescoço com um giro horizontal e separei uma cintura do tronco com outra estocada.

Uma vantagem de enfrentar goblins é: não é necessário vencer todos, apenas a maioria. Dos dois que ainda estavam em confronto, um recebeu minha lâmina no tornozelo e foi para o chão, permitindo que eu o finalizasse ali mesmo. O outro teve tempo de fugir enquanto eu ainda me ocupava matando o seu colega e aquele que eu havia chutado nem retornou ao combate. Procurei por Gladius e ele não se encontrava em situação muito diferente da minha. Com seus golpes ligeiros e precisos, estava atacando um goblin fugitivo pelas costas e assistindo mais três fugirem dispersos.

Sem mais estorvos, meu amigo apoiou a espada no chão e levantou a perna ensanguentada.

- Você está ferido!

- Obrigado por me avisar, senhor óbvio.

As pessoas da caravana começaram a por os rostos para fora das carruagens, ainda temerosas. Gladius mancou até uma roda e se apoiou.

- Temos que cuidar disso.

- Não, Draco, eu prefiro deixar assim mesmo até a minha perna cair.

- Você pode falar sério por um segundo?

- Esfria a cabeça, eu vou ficar bem.

Alguns começaram a nos cercar. Uma mulher olhou para a perna machucada do meu amigo, levou as mãos aos rostos e saiu de perto, quase passando mal. Uns olhavam por curiosidade e outros por preocupação. O mercador, chefe da caravana, veio agradecer aos gaguejos, ainda tremendo e gesticulando excessivamente. Eu o confortei mais para que calasse a boca e me permitisse cuidar do meu amigo do que por qualquer outra coisa. A ameaça já havia ido embora, agora eu precisava ver se o ferimento era grave.

Uma das moças se apresentou como parteira de sua vila e afirmou que entendia algumas poucas coisas de ferimentos. Afirmou que o ideal seria costurar a carne para impedir o sangramento, porém, como ninguém possuía o material para aquilo no meio da estrada, ela poderia fazer uma tala e preparar uma atadura improvisada. Além disso, torcer para que a cicatrização ocorresse bem e esperar chegar num local civilizado para procurar uma ajuda mais indicada. Quando eu percebi que Gladius já estava ficando a vontade demais com a dama, fui para longe e deixei os dois a sós.Mais tarde, ele comentou como a visão do decote era bela enquanto ela enfaixava sua perna.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Irmãos (Parte 4)

- Por favor, não deixe que eles me devorem vivo.

Gladius stava transtornado. Passara a tarde toda indignado com a declaração de uma noiva. Era dever dele, como nobre, se casar e fortalecer a família, gerar um herdeiro e honrar o pai. Mas ele não queria nada disso. Ainda tinha um ímpeto muito forte e desejava viajar. Desejava nunca parar de viajar, para falar a verdade.

Entramos juntos na sala de jantar. Pelo menos duas dúzias de convidados nos aguardavam. O pai de Gladius se sentava na cabeceira da longa mesa de pedra cinzenta e reservara dois assentos ao seu lado direito para nós. Sentamos e começaram as formalidades. O pai fez um discurso sobre o quanto se orgulhava do filho e o quanto era bom tê-lo em casa, onde – ele falou soletrando – era o seu devido lugar. Os parentes estavam orgulhosos enquanto o meu amigo não estava mais com o sorriso descontraído no rosto. Em vez disso, estava com a expressão fechada como alguém que realiza um trabalho com desgosto. Eu compreendia. Gladius não fizera nada demais e estava sendo elogiado por, supostamente, obedecer ao seu pai. Nosso mestre não nos ensinou a ver mérito onde realmente não havia. Meu amigo estava tenso, pois sabia que decepcionaria a família em breve. Eu estava tenso porque sabia estaria lá para assistir a cena.

Seu pai percebeu o clima do filho e, estrategicamente, se manteve ocupado com conversas paralelas por horas. Sua mãe e sua irmã conversavam baixo entre si ao ponto de só as duas ouvirem uma a outra, sempre inclinando um pouco o queixo para baixo e mexendo o lábio ao mínimo para ninguém bisbilhotar ou ler o que falavam – artes femininas. Eu e Gladius estávamos entediados. Preferíamos estar treinando ou bebendo em algum canto – bebendo de verdade, não o vinho aguado que estava sendo servido. Eu e ele trocamos meia dúzia de palavras sobre a harpista do jantar ou sobre os dias de viagem, nada além de banalidades que nos irritavam mutuamente.

Uma hora, o pai de Gladius fez questão de acender o pavio da noite. Era obvio que uma hora ele começaria.

- Mas, em breve, meu filho conhecerá sua noiva.

Sua irmã e sua mãe pararam de cochichar e prestaram atenção em nós.

- O quão breve se refere, pai?

- Oras, o mais breve possível! Essa semana ainda!

Gladius me olhou de canto de olho.

- Não será possível – ele foi prático.

A mesa parou para nos olhar.

O rosto do patriarca desmanchou o bom humor e assumiu a severidade militar.

- Será totalmente possível, meu filho. Você está aqui e ela virá ao seu encontro. Celebraremos sua festa de noivado.

- Pai, é necessário ser um cidadão para ter direito ao matrimônio e eu ainda não tenho esse direito.

- Não fale bobeiras, todos nós sabemos que esteve treinando duro nos últimos sete anos, reconhecemos isso como o serviço militar que todo homem deve cumprir para se tornar um cidadão. Você completou a sua tarefa, já pode se casar!

- Não pai, todo homem deve proteger a sua cidade antes de se tornar um cidadão e eu não fiz isso.

O patriarca cerrou o punho segurando parte da toalha de mesa e franziu todo o rosto, controlando sua fúria.

- Não seja por isso, garoto – falou pausadamente, se segurando. – Você entra para a milícia, protege sua cidade e conhece a sua esposa.

- Imagino que minha noiva deve ser de boa família e tal boa família não se agradaria em casar sua filha com algo abaixo de um capitão, não é? E ninguém aqui acharia digno promover um garoto a capitão por mero interesse familiar.

- Mero interesse familiar? – O pai repetiu entre os dentes. Parecia pronto para pular por sobre a mesa e espancar o filho. – O seu sonho de menino era treinar para ser um gladiador e eu lhe concedi esse desejo e agora você se recusa a cumprir a vontade que qualquer pai tem de ver seu filho casando com uma boa moça!? – Seu rosto começava a avermelhar.

Espiei ao meu redor, mas a sala parecia congelada olhando os dois. Até a harpista havia parado sua harmonia e parecia entretida com a situação.

Gladius levantou e fez a única coisa que sabia fazer além de lutar: usou sua lábia.

- Eu jamais o desonraria, pai! Muito pelo contrário! Quero lhe agradecer por ter atendido ao meu desejo juvenil e quero fazer valer o seu investimento. Quero ir para as arenas!

Todos arregalaram os olhos, imaginando que meu amigo havia cavado a própria cova com suas palavras, seu pai demonstrou alguma curiosidade pelo o que estava ouvindo. Gladius prosseguiu:

- Já que não servi à minha cidade devidamente e, agora, demoraria para eu ser um membro conceituado na nossa milícia, me proponho a honrar os anos de treinamento indo para as arenas e me tornando um campeão! Vencerei em nome não só de minha família e também de minha cidade! Allandria será conhecida não só como a cidade que carrega o nome da Matriarca da Justiça, mas também por possuir o mais ilustre dos gladiadores! – Meu amigo inflamou.

Todos se surpreenderam com suas palavras. Todos esperavam alguma reação. Alguma, qualquer, não importava qual fosse, para poder imitá-la e consagrar a cena.

Eu me levantei e aplaudi.

Em seguida, um ou dois aplaudiram e mais e mais e a mesa inteira estava de pé e os talheres vibravam sobre a mesa. O patriarca abriu um sorriso de canto de rosto, se ergueu, beijou o rosto do filho, o abraçou e saboreou os aplausos.

Dois exibidos.

***


- Obrigado por ontem, salvou a minha pele.

- Eu não fiz nada, foi o seu discurso que fez valer a noite.

- Pare de falar bobeiras, se não fosse por você ao meu lado, eu teria sido a sobremesa da noite.

- Se ficar falando assim por ai, vão nos chamar de pederastas.

- Pelo menos acharão que sou eu que fico por cima.

Rimos juntos um pouco e pegamos nossas mochilas.

Já era manhã do dia seguinte e estávamos partindo para Arena, o Reino dos Guerreiros, enfrentar o nosso primeiro desafio real.