quinta-feira, 30 de junho de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Três Homens em Conflito

Ei! Esta é a sétima - e última - parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a sexta parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.


***

Miguel

O extenso corredor levou a um luxuoso salão de banquetes. Uma grande lareira ao fundo era a principal fonte de iluminação e calor, sobreposta pelo brasão de McKinley - e do Sindicato Informal -, um olho com um sol no lugar da pupila. Pilastras e janelas ladeavam uma longa mesa de mármore, onde o cretino jantava.

Calvo, barba negra bem aparada, rugas por todo o rosto. Traje de gala branco, gravata borboleta azul, pulseiras e anéis nas mãos. Sorriso inconveniente. McKinley estava confortável em seu lar. A mesa tinha comida o suficiente para dezenas de pessoas e o rótulo da garrafa de hidromel tinha inscrições élficas que indicavam sua raridade - e preço certamente exorbitante.

Ao seu lado, um guarda-costas incomum. Lembrava a criatura que Rogerus e Giovan derrotaram no começo daquela noite, só que maior. Provavelmente eu, o mais alto do meu grupo, não alcançaria nem o seu abdômen. Pernas atarracadas, ombros e braços imensos. Pele espessa, músculos inchados, rosto vagamente humano, ainda que deformado: olhos e dentes pequenos, mandíbula e pescoço pronunciados. Pinturas de guerra ornamentavam seu rosto e seu tórax em branco, contrastando com sua postura ameaçadora. Seus únicos trajes eram botas, braçadeiras, cinturão e saiote de ótima qualidade, provavelmente presentes do McKinley. Apoiado no chão, um machado com o dobro do meu tamanho, cravejado de runas arcanas. Em seu rosto, um misto de ferocidade e ansiedade.

- Esse é Angorosh, da tribo Garras de Ferro, eles costumam assaltar as estradas - Rogerus sussurrou enquanto identificava o ogro.

Qualquer movimento brusco e com certeza aquele monstro defenderia seu mestre. Um dos dois, eu e meus amigos poderíamos dar conta. Ambos, duvido muito.

- Sentem-se - o líder do Sindicato Informal ofereceu.

- Não - fui sucinto.

- Meus criados tiveram tanto trabalho em preparar esta janta e vocês vão fazer desfeita?

- Falando em criados, isso daqui está meio vazio.

- Temos pessoas o suficiente na nossa reunião.

- Nós sobrevivemos a todo tipo de bandido essa noite. Você vai precisar de mais do que um leão de chacra - blefei.

- Não pretendo lutar com vocês.

- Covarde.

- Não sou covarde, apenas cauteloso. Diferente de você.

- Deixar que os outros façam o seu serviço sujo não é cautela, é covardia.

- Se todas as pessoas sujassem as mãos, o mundo não teria líderes. Imagine que caos.

- Caos é o que você fez com essa cidade.

- Ora, faça-me o favor. Eu estou reestabelecendo a ordem na cidade.

- Ah, mas não está mesmo.

- Já que vocês não vão se sentar, aqui está a minha proposta: eu noivo com sua filha e garanto que a cidade inteira fique sob o nosso comando.

- Só por cima do meu cadáver.

- Caso não tenha percebido, eu também estou pronto pra atender essa exigência. Estou sendo piedoso em oferecer outro caminho.

- Caso não tenha percebido, eu fui piedoso em não matar cada líder de gangue nesta madrugada. Não sei se serei tão generoso com você.

- Acha que eles serão gratos pela sua suposta piedade? Estarão todos sob o meu comando contra você no primeiro estalar de dedos.

- E serão aniquilados.

- Se quer blefar, pelo menos tente ser convincente. Você não teria a menor chance. Mas… Se eu e Lys nos unirmos, a cidade terá paz.

- Viver sob o medo não é paz. Eu vi o que o Sindicato fez com a cidade. Alucinógenos, extorsão, venenos. Que merda de paz é essa?

- Qual é o problema com os alucinógenos? O povo quer, o povo compra. Ninguém nunca obrigou uma pobre vítima a ingerir qualquer erva ou fungo nessa cidade. E ao que você se refere com extorsão? Os impostos não são um tipo de extorsão? Não vejo diferença nenhuma entre as suas práticas e as minhas, nesse caso. E sobre venenos… Bem, pensei que você gostasse de traficantes de venenos.

Não precisei olhar para Giovan para saber que seus olhos incendiaram.

- Nós vamos mudar essa cidade. Faremos dela um lugar melhor.

- Através de uma guerra civil? Não, Miguel, eu farei dessa cidade um lugar melhor.

- Melhor pra quem? Você e seu clubinho?

- Pra todos. A diferença entre eu e seu tio é que eu sou um trabalhador como todos os outros e ele era um parasita. Ele não fazia nada pela cidade, apenas vampirizava os cidadãos através dos impostos. Miguel, você vive num dos castelos mais requintados do reino, sabe disso. Eu, por outro lado, me esforcei pra dar ao povo o que ele merece: mais trabalho, mais dinheiro, mais conforto. Só assim pra qualquer um conseguir pagar o que seu tio cobrava e ainda sobrar dinheiro pro arroz e feijão. A burguesia prospera e a nobreza decai, é a ordem natural do mundo. Se quer sobreviver, vai precisar de mim. A cidade inteira precisa de mim.

- Quando você criticou os meus blefes, pensei que teria alguns melhores. O povo está mais miserável do que nunca, você só está trocando a nobreza pela burguesia.

- Não se elimina a miséria em um ano, é necessário décadas. A burguesia trabalha, enquanto a nobreza só goza dos privilégios. O seu sistema está falido.

- Ou você é tão cego quanto o meu tio foi, ou é o pior dos pilantras. Seu discurso é o completo oposto dos seus atos. A cidade nunca vai prosperar seguindo o seu rumo. Você abandonou a sua irmã só porque não gostou do seu cunhado, imagina o que vai fazer com o povo.

Foi a vez dos olhos de McKinley incendiarem.

- Minha irmã tomou suas próprias decisões. Eu apenas respeitei seu rumo.

- Você deu as costas a ela! - Giovan não conteve o grito.

- Ela podia voltar a hora que quisesse. Eu ofereci um bom partido a ela, um marido que iria protegê-la e honrá-la e ela não quis. Ela foi contra o que era melhor pra ela e pra cidade. E você? Foi caçar! Matar bichos no mato! Arrancar couro e extrair veneno!

- Pensei que você respeitasse o trabalho duro - Rogerus ironizou.

- Se minha irmã tivesse ficado comigo, ela estaria viva e a cidade estaria ainda mais forte com um casamento digno. Em vez disso, ela está morta.

- Você não é menos culpado do que eu - Giovan rosnou por entre os dentes.

- Eu busquei redenção, e você?

- Você é ridículo - eu cuspi as palavras.

- É sério, eu busquei redenção. Inclusive, desenvolvi o antídoto pro veneno de mantícora - McKinley puxou um frasco de um dos bolsos.

- Isso não muda nada. Você não fez nada pra salvar a sua irmã e nem pode trazê-la de volta.

- Mas posso salvar futuras vítimas. Ou até ajudar novos caçadores.

- O veneno mata em menos de uma hora, seu antídoto só serve pra quem for estúpido o suficiente pra caçar mantícoras - Giovan falou com hesitação. Não leio pensamentos, mas ficou claro de que estava desconfiado de algo.

- Ou quem for estúpido o suficiente pra invadir a torre de um mago.

Meu estômago revirou.

- Ou vocês acharam que eu daria qualquer chance de vocês tirarem Lys daqui? Supondo que Miguel fosse estúpido o suficiente pra cercar a torre com seu humilde exército, muitos morreriam, mas a vantagem numérica abriria caminho pra dentro do meu lar. Supondo que, por algum milagre, o humilde exército de Miguel, além de conseguir entrar pelos portões, conseguisse derrotar os meus homens. Por mais que as chances sejam pequenas, ainda há chances e eu não jogo com a sorte. Eu jogo com certezas. Caso seu humilde exército invadisse a torre e derrotasse meus homens, soldados não são páreos contra armadilhas. E eu tenho muitas. E esse é o meu trunfo. Qualquer um que tente chegar até Lys, vai ter que passar por tantas armadilhas, mas tantas… Que é impossível evitar todas. Podem tentar se quiserem, estarei esperando aqui em baixo. Dica: a última e mais bem escondida é a armadilha com veneno de mantícora.

Eu podia sentir cada músculo do meu corpo retesado.

- Já imaginava que essa seria a reação de vocês. Então, podemos negociar agora?

Giovan sacou o arco, puxou uma flecha e mirou na direção de McKinley enquanto o ogro prontamente colocou o braço na frente do seu mestre, tampando a nossa visão e protegendo o cretino.

- Entrega o antídoto agora - Giovan não estava mais raciocinando.

- Impressão minha ou está rolando algum tipo de emergência? - A voz do maldito era nítida curiosidade.

Giovan deu um passo para o lado e o ogro acompanhou o movimento, bloqueando o mestre com o próprio corpo. Uma flecha não o intimidava.

- Dá licença, Angorosh, não consigo ver meus convidados.

O ogro tirou o braço e uma flecha disparou bem na testa do mago, fazendo um brilho esverdeado ressoar. Não havia sequer um arranhão no meio das rugas e a flecha quicou no chão. McKinley encarava meu amigo tentando decifrar o que estava acontecendo, enquanto ignorava a flecha aos seus pés.

- Eu não acredito. Isso é desespero? Não me diga que tem mais alguém com vocês!

McKinley arregalou os olhos em sincera surpresa e levou a mão à boca contendo uma risada. Ele não iria gargalhar, é muito clichê para seus gostos. Em vez disso, segurou o sorriso enquanto digeria a informação. Quando teve certeza do que estava acontecendo, começou a bater palmas.

- Nossa, parabéns! Parabéns! Vocês são geniais! Eu não sei quem foi estúpido o suficiente pra embarcar nessa jornada suicida, mas vocês conseguiram! Tem mais alguém na torre, não é mesmo? A gente está aqui conversando, enquanto alguém tenta resgatar a Lys. Acertei?

- O antídoto. Agora - Giovan já tinha outra flecha pronta.

- Sinto lhe informar, mas seja lá quem for, vai morrer.

- Seu filho da puta! Ela não tem nada a ver com isso! Dá o antídoto!

- Ela? É sério que você enviou mais uma mulher pra ser morta pelo veneno de mantícora? Excelente! Estou até começando a acreditar em justiça divina! Pra sua informação, eu não obriguei ninguém a invadir a minha torre, essa pessoa aí entrou porque quis, logo, tem tudo a ver com isso. E eu não vou dar o antídoto sem antes termos um acordo e não costumo aceitar promessas. Avaliando as probabilidades menores, por mais que vocês consigam pegar o antídoto e correr escadas acima, é próximo do impossível que façam isso a tempo. Realmente, não há nada o que podemos fazer pra salvar a sua amiga.

Desembainhei a espada e Rogerus apontou a glaive para o ogro.

- Não deixe que esses dois cheguem perto de mim, eu cuido do arqueiro - McKinley limpou a boca com um lenço e se levantou.

- Com prazer - o monstro grunhiu.

Antes que pudéssemos avançar, Angorosh levantou a mesa com uma mão só, fazendo-a capotar em nossa direção, dividindo-nos, e investiu contra Rogerus. Seu machado conseguia ter um alcancei ainda maior do que a glaive, impedindo que meu amigo usasse sua tática de manter a distância.

Mas eu não tinha tempo para prestar atenção neles, precisava aproveitar a oportunidade para atacar McKinley. Eu só precisava acertar um único golpe. Só um.

Dei dois passos e o ogro chutou a mesa, empurrando-a contra o meu tornozelo e me derrubando no chão. Enquanto me levantava, a criatura deu um único passo e desceu seu machado como uma guilhotina contra a minha cabeça. Rolei para longe e ouvi o mármore estourando a centímetros de distância. Foi por pouco.

A sala piscou num relâmpago que disparou das mãos do McKinley e acertou uma janela, espalhando cacos por todos os lados. Giovan não desperdiçava flechas, pois sabia que magia era um recurso limitado e precisava forçar nosso inimigo a gastar toda a sua reserva. McKinley, por sua vez, não tinha pressa em nos matar, poupando seus feitiços para quando encontrava uma brecha nas defesas de Giovan.

O ogro deu mais um passo, eu e Rogerus estávamos divididos e nosso inimigo já estava pronto para proteger McKinley por qualquer ângulo. Levantei-me e me preparei para uma investida enquanto meu amigo pegou impulso, correu, usou sua arma como bastão e tentou saltar por cima do ogro.

Infelizmente, só tentou. Angorosh girou seu machado e acertou Rogerus ainda no ar. Não pude ver com detalhes, pode ter sido só um arranhão, pode ter partido o meu amigo ao meio. Se era para um de nós morrer, que os vivos honrassem seu sacrifício.

Corri em carga e joguei todo o meu peso numa estocada contra o estômago do ogro, acertando em cheio. Para a minha decepção, a lâmina não entrou nem um palmo no abdômen do desgraçado. Ele resmungou, olhou nos meus olhos, ergueu seu machado e eu pulei para esquerda, deixando que um buraco se abrisse no chão e não no meu peito. Ainda de joelhos, girei minha espada e abri um corte no tornozelo da criatura. Eu poderia ter partido um guerreiro ao meio, mas só consegui arrancar um filete de sangue do ogro. Seria necessário muitos cortes até derrubá-lo.

Angorosh girou o corpo e raspou sua lâmina pelo chão, tentando acertar minhas pernas. Saltei em outra cambalhota e estoquei contra sua virilha, sem sucesso, pois meu inimigo aproveitou o próprio impulso para recuar e voltar à guarda. Era a minha vez de me defender.

Enquanto me preparava para a esquiva, pude ver Rogerus raspando sua glaive na costela de McKinley.

- Ele sangra! - O lanceiro anunciou.

Três flechas dispararam na direção do mago, mas ele já havia conjurado um anel de fogo ao seu redor, engolindo Rogerus na linha de chamas. As flechas se desfizeram na barreira flamejante e o lanceiro ainda teve forças para saltar para dentro do anel, em vez de fugir para fora como qualquer pessoa sensata faria.

Angorosh simplesmente me deu as costas e saltou para dentro do anel de fogo, ignorando as queimaduras que brotaram pelos seus braços e pernas como se fossem um pequeno inconveniente. Tentei atacá-lo pelas costas, mas ele estava distante demais para um golpe simples, eu precisaria segui-lo pelas chamas.

Respirei fundo e me preparei para a investida, mas o corpo de Rogerus voou para fora do fogo, aparentemente inerte. De dentro, pude ver o ogro com os braços estendidos e o cabo da arma em riste, como quem desfere uma estocada. A prioridade era nos manter longe do seu mestre, afinal. Rogerus, por sua vez, tentava se levantar com muita dificuldade. Sua barriga e suas pernas eram sangue puro e ele ainda tentava dolorosamente recuperar o fôlego depois do último golpe. Reconheço um guerreiro à beira da morte quando vejo, se meu amigo tentasse lutar, seria um alvo fácil.

- Previsível - foi tudo que McKinley disse enquanto disparava um relâmpago no peito de Giovan, que havia escalado uma estante de livros. Meu amigo despencou como uma ave abatida e sua única reação foram os espasmos musculares causados pela eletricidade.

Enquanto isso, Angorosh saiu das chamas na minha direção, sem pressa para me matar. Não me acovardei. Nós dois erguemos nossas armas ao mesmo tempo, como guerreiros que reconhecem o valor um do outro.

E ouvimos o portão de entrada da torre estourando.

Os olhos do ogro encararam o corredor com irritação. Quem está vencendo nunca gosta de ser interrompido. Sua atenção se dividiu. Eu me agarrei à minha única esperança e aguardei que o ogro se distraísse por um único segundo para que eu pudesse atacar sem ser morto no caminho. E alguma coisa invadiu a sala de banquetes em fúria na direção de Angorosh.

Um palmo a mais do que eu de altura, um tapa-olho improvisado e uma clava do tamanho da minha espada. O ogro que Rogerus e Giovan haviam derrotado no início daquela noite estava atacando Angorosh.

- Você, forte! Eles, mais fortes! Você, sozinho, fraco! Eles e eu, mais fortes!

- Pequeno! Fraco! Traidor! - A atenção do monstro maior estava toda no novo oponente.

O machado descreveu um arco no ar, quase acertando o tórax do ogro menor, que aproveitou a brecha para acertar a clava contra a têmpora do Angorosh, aparentemente atordoando-o por um segundo.

Corri, me engajei no corpo a corpo e raspei minha espada nas costas do meu inimigo, que rosnou de dor. Sua arma girou mais uma vez e eu me abaixei e senti apenas o vento se deslocando. Levantei-me e aproveitei o impulso num golpe diagonal que abriu uma fenda na coxa do Angorosh, enquanto o ogro menor fez seu ombro estalar num impacto ruidoso.

Com um braço machucado, seus movimentos ficaram ainda mais lentos e previsíveis. Angorosh preparou um ataque, mas recebeu a clava no peito e a espada no estômago antes mesmo de erguer os braços.

Finalmente estávamos conseguindo arrancar sangue do ogro.

Uma costela estourou com um golpe de clava. Um corte generoso quase partiu um antebraço ao meio. Um tornozelo se deslocou no impacto da clava. Uma estocada perfurou uma coxa, fazendo Angorosh cair de joelhos. O ogro menor aproveitou e quebrou sua mandíbula num único ataque. Eu quase abri seu tórax com uma espadada.

E, finalmente, Rogerus retornou ao combate e encravou sua glaive no pescoço do Angorosh.

O ogro estava morto.

Não tivemos tempo nem de pegar fôlego quando o anel de fogo se dissipou e um cone flamejante lambeu nossos corpos. Tentei proteger meu rosto enquanto senti minha pele criar bolhas e pulei para o mais longe que pude. Ao perceber que estava fora do alcance da magia, olhei ao meu redor e vi Rogerus rolando no chão até apagar o fogo e então cedendo aos ferimentos mais uma vez, sem forças para se levantar.

O ogro menor rosnou para o McKinley e recebeu um relâmpago em resposta, arrancando um urro frenético. O ogro deu um passo e outro relâmpago cobriu o seu corpo, que não teve nem tempo de gritar, apenas amoleceu e tombou. Eu já havia visto magia antes, mas nunca tantas seguidas em tão pouco tempo.

Apontei minha espada para McKinley, preparei a investida, mas ele já estava com a mão apontada na minha direção.

- Você não tem forças pra mais magias - desafiei.

- Vem aqui e descobre.

- Eu só preciso de um golpe pra te partir ao meio.

- E eu só preciso de um relâmpago pra te mandar pro Abismo.

- E eu só preciso de uma flecha.

Ao mesmo tempo em que a voz do Giovan surgiu dos fundos do salão, uma seta se encravou nas costas do McKinley, provavelmente perfurando seu coração. O mago arregalou os olhos. Mais por surpresa do que dor. Sem risadas dessa vez. Seus joelhos amoleceram. Sua roupa branca rapidamente se tingiu de vermelho. E seu rosto finalmente foi de encontro ao chão.

E nós respiramos aliviados.

O corpo se acalmou, mas a mente continuava um turbilhão. Meus amigos estavam à beira da morte. Minha filha ainda estava presa na torre. Nimh já podia estar morta a essa altura. McKinley foi derrotado, mas isso não garantia a nossa vitória.

Giovan mancou às pressas para o corpo do nosso inimigo em busca do antídoto e eu olhei ao meu redor. Rogerus e o ogro menor respiravam. Apressei-me até o meu amigo para conferir seus ferimentos. O corte do machado era enorme, mas estava quase completamente cauterizado.

- O fogo fechou as feridas. Irônico, né? - Sua voz era um fiapo.

- Não fechou tudo, fica quieto que eu vou fazer um curativo.

- Eu me viro. Você precisa se apressar, a Nimh pode estar em apuros.

Olhei para Giovan. Ele chegou até McKinley, botou a mão em seu ombro, girou seu corpo de barriga para cima e a mão do desgraçado agarrou o abdômen do meu amigo.

- Escute com bastante atenção - o mago se agarrava à vida com a calma que só o desespero traz. - Se você fizer qualquer movimento brusco, eu literalmente desintegro seu corpo até só sobrar pó, isso não é uma ameaça, é um aviso, está entendendo? Agora… Eu exijo que…

Giovan sacou sua adaga e uma luz verde piscou da mão de McKinley.

- Não! - Eu gritei em reflexo e corri na direção dos dois.

Um buraco se abriu no abdômen do meu amigo e começou a aumentar lentamente. A adaga entrou no pescoço do McKinley, que não teve nem o prazer de ver sua magia terminar seu efeito. Enquanto seu sangue se espalhava pelo chão, o peito, o ombro e as pernas de Giovan se esfarelavam.

- Não! Não! Não!

- Miguel, você é muito cabeça oca mesmo.

Seu sorriso sarcástico surgiu enquanto seu pescoço abria como um papel virando cinzas.

- Eu comecei essa noite jurando a mim mesmo que não morreria hoje…

Toda a parte da frente do seu corpo já não existia, exceto pelo rosto. Aos poucos, ele se desmanchava na minha frente.

- Mas acabei descobrindo que eu minto muito bem até pra mim mesmo… Já faz um tempo que eu não me importo com a minha vida. Acho que deu pra perceber, né?

Já era possível ver através das suas costas. O queixo já começava a sumir. O sorriso continuava lá.

- Agora, para de perder tempo. Salva a Lys e a Nimh… E sabe de uma coisa?

Seus olhos se fecharam. Seu rosto se desfez. Tudo o que sobrou foi um último eco:

- Acho que você me salvou também. Obrigado por tudo.

Não tentei conter as lágrimas. Eu não tinha tempo para isso. Só tive tempo de pegar fôlego, agarrar o antídoto e correr para as escadas.

Subi até a biblioteca e pude ver alguns virotes espalhados pelo chão e um machado suspenso no teto pelo caminho. Provavelmente havia outros detalhes que eu ignorei. Só fiquei um pouco aliviado de não ver sangue pelo chão, confirmando que Nimh não havia se ferido logo no início.

Se antes a minha mente era um turbilhão, agora era apenas o resgate. Nimh podia estar em seus últimos segundos. Ou podia já estar morta. Pior, ela poderia ter alcançado Lys e as duas poderiam ter sucumbido juntas em alguma armadilha no caminho de volta. Tudo o que eu havia passado até ali parecia supérfluo. Nada era relevante. Tudo se resumia à vida de duas jovens que não tinham culpa de nada.

Corri por mais um lance de escadas, entrei no escritório e senti um estalo no meu pé, que abriu um alçapão e derrubou um óleo sobre minha cabeça. Recuei por reflexo e vi o chão criar bolhas e buracos com o ácido que poderia ter me matado. Sem tempo a perder, avancei e decidi que evitaria as armadilhas simplesmente não parando para ser atingido. Senti o segundo estalo e meu plano logo se mostrou falho, pois incontáveis espinhos brotaram do chão e conseguiram perfurar meu pé esquerdo. A dor só piorou quando eu me equilibrei e puxei a bota para fora da armadilha. Certamente havia um método melhor de tirar o pé de um espinho, mas eu não tinha tempo. Manquei até a escada para o próximo andar e pude ver de longe mais um gatilho no solo, evitando-o sem dificuldades.

Eu não sentia dor. Sentia cada ferida daquela noite. Desde o primeiro sangue derramado até a última armadilha que me feriu. Só não doía. Era uma sensação de vazio, de peças faltando, de peças perdidas. Ao mesmo tempo, juro que sentia cada ferida que provoquei. Cada corte. Cada perfuração. Cada vida que tirei. E nada doía. E nada me preenchia. Na verdade, era como se tanto sangue derramado fosse o combustível que me fazia subir cada degrau. Faltava pouco agora. Pouco para fazer valer cada gota de sangue. Ou para ser eternizado como o homem que provocou uma guerra civil e encontrou duas pessoas mortas como prêmio.

- Nimh!? Lys!? - Eu gritei assim que cheguei no quarto andar.

Manquei com toda velocidade possível pelo corredor circular e logo um virote raspou nas minhas costas, quase perfurando meus intestinos ou minha coluna.

Mais sangue.

Minha visão ficou suavemente turva e eu perdi as contas de quantas portas e janelas já havia passado. Meu pé perfurado começou a adormecer e, quando me dei conta, eu já estava me segurando pelas paredes.

Um estalo e um tijolo falso acertou meu tornozelo feito um aríete, esmigalhando alguns ossos.

Caí de joelhos.

Tentei me levantar.

Não consegui.

Comecei rastejar pelo corredor. Olhei ao redor e vi tudo embaçado. Pisquei com força, a visão se corrigiu por um instante e voltou aos borrões. E eu rastejei. Os braços estavam trêmulos, mas conseguindo se manter eretos. Apenas um joelho respondia, o outro sendo arrastado, inútil. E eu rastejei. Mais portas. Mais janelas. Mais mobília e mais quadros. Os ombros ardiam e minhas mãos sangravam de tanto esforço.

E eu rastejei.

Não sei o que vi primeiro: o corpo de Nimh caído em frente a uma porta entreaberta ou a guilhotina que desceu na direção do meu pescoço. Com minhas últimas energias, rolei pelo chão, mas não tive tempo de tirar o braço que usei de impulso. Meus reflexos já estavam prejudicados demais e, no último momento, eu senti os ossos do meu antebraço cederem por apenas um segundo, seguido pelo fervor do sangue escorrendo farto pelo tapete.

E eu rastejei.

A mão restante puxou meu corpo. O outro cotovelo serviu de apoio. Um joelho deu um pequeno impulso.

E eu desabei.

Não foi aos poucos. Foi de uma vez só. Eu já estava avançando sem ter nenhuma energia. Mas nem mesmo a força de vontade dura para sempre. Meu corpo cedeu. Nada respondia. Apenas meus olhos. Não estavam mais embaçados, provavelmente as lágrimas limparam minha retina.

Nimh estava a apenas um passo de distância. Eu desejei encontrá-la, ao menos, serena. Em vez disso, ela agonizava. Sua pela clara agora era cinzenta. O peito tentava respirar inutilmente. O olhar era distante, febril.

Minha única mão quase encostava na dela. O antídoto estendido à disposição de uma inocente que não podia agarrá-lo.

Meu último medo foi não morrer. A visão começou a escurecer e eu fiquei apavorado. Acordar depois de um fracasso tão horrendo seria ainda pior do que morrer olhando o antídoto nas minhas próprias mãos enquanto Nimh delirava.

Por fim, Rogerus pegou o antídoto, colocou a jovem em seu colo e despejou o conteúdo em seus lábios, sem surtir nenhum efeito.

Minha mente vagou para longe da torre.

Meus olhos se apagaram aos poucos.

Meu corpo se entregou ao vazio.

E o último som que pude ouvir foi a respiração engasgada de Nimh.



***

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quinta-feira, 16 de junho de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Sacrifício

Ei! Esta é a sexta parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a quinta parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.

***
 Rogerus

- Nenhum guarda cercando a torre. Preocupante - eu espiava por detrás de uma casa.

- Tem uma janela aberta lá em cima - Giovan subiu num barril e se debruçou num telhado, tomando cuidado para não ficar exposto demais. Sua tática de aproveitar o terreno elevado era inútil quando o assunto era espionar uma torre.

- Por isso que guerras são simples, é só chegar com o pé na porta. Não existe outra entrada - Miguel resmungou.

- Aposto que o canalha irá lançar uma bola de fogo ou um raio congelante nas nossas cabeças assim que dermos as caras - Giovan desceu do barril.

- Ele nem precisa gastar magia com a gente, óleo fervente já encerraria o nosso dia - comentei.

- Quantos soldados ele deve ter lá dentro? - Miguel falava como quem pensa alto.

- Muitos. Sem falar em armadilhas e talvez até experimentos. O cara gosta de comprar cobaias vivas - Giovan informou. - Se conseguirmos entrar despercebidos, até dá pra evitar os guardas. Eles devem estar concentrados na porta, esperando a gente.

- Com certeza tem uma guarnição com o McKinley e outra com a minha filha.

- Miguel, numa boa, a gente já enfraqueceu as principais gangues da cidade. É melhor negociar agora.

- Nós não matamos os líderes e agora é tarde demais pra pensar nisso.

- Simplesmente não dá pra entrar pela porta da frente - determinei.

E fez-se silêncio entre nós três.

- Estão ouvindo isso? - Giovan ergueu uma sobrancelha.

Não dava para ouvir nada. Fechei os olhos e me concentrei por um instante.

Passos.

Empunhei a Longinus.

- Apareça!

- Shhh, vão chamar a atenção dos guardas - era uma voz de mulher. De menina, na verdade.

Ruiva, alta e amedrontada. Ela saiu de uma viela e se aproximou sem fazer quase ruído nenhum. De perto, era nítido: uma adolescente. Talvez sua altura enganasse, mas o rosto sardento de criança, a voz fina demais e os olhos azuis e apavorados deixavam claro que era apenas uma garota. Mas não se vestia como tal.

Uma meia longa e remendada se estendia até a coxa para valorizar a pouca carne das pernas à mostra. Por outro lado, uma saia curta e rasgada deixava detalhes demais escaparem. Apenas um corselete e uma blusa puída tampavam o torso, deixando o decote, ombros e pescoço visíveis. Carregava apenas uma bolsa de couro larga, provavelmente para guardar várias mudas de roupa. Somente um imbecil iria gostar de ver uma adolescente daquele jeito. 


- O que você está fazendo aqui? - Giovan conteve o susto e uma aparente irritação.

- Vim agradecer.

- Enlouqueceu? Eu te falei pra ir pra casa.

- Mas você vai morrer.

- Eu não vou discutir. Não te salvei de uma taverna em chamas pra você vir pra torre do homem mais perigoso da cidade.

- Eu conheço essa torre por dentro.

- Eu já falei… O quê?

- Antes você tinha minha atenção, agora tem minha curiosidade - Miguel se meteu na conversa.

- Eu conheço tudo lá dentro.

- Como? - Giovan estava incrédulo.

- Já estive em duas festas do McKinley. O lugar nem é tão assustador quanto falam.

- Festa é uma coisa, conhecer tudo é outra - Miguel estava desconfiado.

- Acha que sou idiota? Sempre que um cliente dorme, eu faço questão de conhecer cada cômodo da casa. Pra caso eu precise fugir correndo. E caso tenha algo de valioso também. Sabe quantas meninas já apanharam por que a esposa chegou antes da hora? Só uma idiota não traça um plano de fuga na primeira oportunidade.

- Tudo bem, já explicou o suficiente - Miguel cortou. - Só não explicou o que você está fazendo aqui.

- Vim ajudá-los.

- Eu contei tudo pra ela - Giovan percebeu que a desconfiança do conde só aumentava.

- O quê? Quando?

- Não está óbvio? - Questionei.

Para Miguel, não estava.

- Quando saímos da taverna do Yojimbo - Giovan explicou.

- Então era isso que você foi fazer?

- Eu expliquei o sumiço.

- Só não explicou que ia salvar uma criança.

- Ei, não fale de mim como se eu não estivesse aqui. Digo, vossa senhoria - a menina gaguejou. - O nome é Nimh.

- Tudo bem, Nimh, como podemos entrar na torre?

- Pelo esgoto.

- A cidade não tem esgoto.

- McKinley mandou instalar debaixo do laboratório alquímico.

- Você explorou a torre mesmo, heim.

- Eu disse que conhecia tudo. E posso tirar sua filha de lá de dentro.

- Nem pensar - Giovan intercedeu.

- Na verdade, pode ser nossa última escolha - Miguel quase lamentava.

- É arriscado.

- Giovan, por favor - Nimh parecia disposta a suplicar. - Eu sei lidar com os guardas sem precisar matá-los.

- Não acho que essa ideia vai funcionar hoje e, por mais que funcionasse, eu não vou te submeter a isso.

- Eu posso envenená-los, cabeção.

- Eu já disse que… Ahn?

- O Yojimbo não sabe, mas eu pego algumas drogas dele de vez em quando. Estou ficando boa em misturá-las e…

- Mais uma vez você já explicou o suficiente - Miguel interrompeu. - Nós três seremos as iscas. Vamos direto pro McKinley e vamos obrigá-lo a convocar todos os seus homens pro nosso combate. Quando não tiver mais ninguém guardando a minha filha, Nimh invade o cárcere e as duas fogem pelo esgoto.

- E a gente? - Perguntei.

- Só precisamos matar um homem.

- Nimh, tem certeza? - Giovan estava preocupado.

- Invadir a casa de um homem perigoso, arrombar alguns cadeados e talvez precisar seduzir e botar alguns capangas pra dormir? A única novidade no meu dia vai ser salvar alguém.

- Última coisa - Miguel falou como se estivesse prestes a fazer um anúncio oficial. - Sinceramente, eu não estou preocupado em sair vivo dessa torre. Essa cidade é podre, mas é o que eu mereço. Cheguei a conclusão de que vocês são muito melhores do que eu em tudo, então… Independente do que acontecer lá dentro, vocês dois serão os protetores da minha filha a partir de hoje e estarão encarregados de ajudá-la a limpar essa cidade.

E, mais uma vez, fez-se silêncio.

- Caso você não saia de lá vivo - complementei.

- É, isso mesmo - o conde fingiu uma risada. - Caso eu não saia de lá vivo.

E, sem mais nenhuma palavra, contornamos as casas até chegarmos no rio.
 

 ***

- Como que eu não sabia disso? - Miguel se espantou com o esgoto sendo despejado na fonte de água mais importante da cidade.

- Eu também não sei como você não sabia de muitas coisas - Giovan deu de ombros e entrou no túnel.

O cheiro era pavoroso e o chão era pegajoso. Fungos e vermes conviviam sem nenhuma timidez, todos parecendo maiores do que o natural. Um cogumelo alcançava o meu joelho e eu vi pelo menos três ratos do tamanho de cães.

- Já esteve aqui? - Giovan perguntou para Nimh.

- Felizmente não - ela tampava o nariz com os dedos. - Descobri o alçapão no laboratório e fiz um passeio pelas redondezas no dia seguinte. Preferi ficar só na dedução mesmo.

- Respirar pela boca pode ser pior - comentei.

Ela tirou o dedo, fez uma careta e voltou a segurar as narinas logo em seguida.

- Por que esse esgoto precisava ser tão grande? - Giovan observava os tijolos manchados de roxo, verde e amarelo, os numerosos corredores adjacentes e a fauna e flora local, cada vez mais diversificada.

- Talvez pudesse ser uma rota de fuga pro próprio mago - desviei de uma cipó que parecia me vigiar.

- Ou estivesse estudando os efeitos dos dejetos - Miguel encarava um sapo do tamanho de uma bota e com uma carapaça espinhosa.

- Impossível qualquer um suportar esse cheiro - Giovan não se conformava com o ambiente.

Ninguém disfarçou o calafrio ao ver uma pilha de corpos decompostos, a maioria apenas ossos.

- Acho que é ali - Nimh desviou nossas atenções dos cadáveres.

E finalmente a entrada para o laboratório. Um túnel de um metro de comprimento. Apenas um problema: ficava no teto. Precisaríamos dar um jeito de escalar até o alçapão e rezar para que ele não estivesse trancado.

- Ouviram isso? - Giovan estancou subitamente.

- Já reparou que sempre que você faz essa pergunta, algo ruim acontece logo em seguida?

- Nimh, pra trás.

Vozes. Vindas de um corredor. Pareciam estar discutindo. Algumas sussurravam, outras balbuciavam. E então, a coisa surgiu.

Uma massa disforme de carne rastejou por um corredor e nos mirou com seus incontáveis olhos surpresos. Olhos castanhos, azuis, verdes, amarelos, laranjas, rosas e provavelmente mais cores do que eu poderia descrever. E bocas. Dentes, gengivas e línguas falavam, rosnavam, choramingavam e davam risadas.

Aquilo não fazia sentido nenhum e estava vindo em nossa direção. Parecia rolar, de forma que as bocas que estavam no chão se voltavam para cima e as que estavam por cima passavam a servir de apoio. Não sei quantos olhos me encaravam ou quantas bocas queriam me morder, só sei que ergui Longinus e me preparei para o combate.

Antes de nos alcançar, a coisa pareceu hesitar, mas essa impressão não passou de uma esperança tola. Algumas vozes se calaram por um momento, apenas para cuspirem um spray asqueroso em cima da gente. Tentei recuar e percebi que a lama aos meus pés estava mais densa, prendendo-me ali mesmo. Aparentemente, a coisa deformava o solo ao seu redor também. Só tive tempo de proteger a visão e sentir minha pele arder com o ácido.

- Meus olhos! - Miguel gritou.

Percebendo quem ficara mais vulnerável, aquilo foi para cima do conde. Com muito esforço, dei um passo e estoquei, perfurando um flanco, se é que aquela aberração tinha flanco. Algumas vozes gritaram, outras me xingaram e algumas pediram mais.

- Que merda é essa? - Soltei.

- Estou pensando em apelidar carinhosamente de “pesadelo”. Agora presta mais atenção em fazer isso parar - Giovan atirava uma flecha atrás da outra, sem nenhum sinal de qualquer efeito.

Um olho foi perfurado, mas ainda havia dezenas ou centenas ao redor. Uma língua foi decepada, mas os dentes partiram a flecha e mastigaram a madeira. Buracos e mais buracos foram feitos na carne ao redor, sem diminuir a fome frenética.

- Vem, vem vem! Quero jantar! Não, por favor, eu sou inocente! - As vozes não paravam.

Estoquei mais uma vez e uma boca agarrou a haste da Longinus, ignorando que estava sendo mutilada por dentro. Cogitei enfiar a lâmina ainda mais fundo, mas percebi que seria abocanhado por todos os lados. Puxei a glaive de volta e ela estava presa.

- Eu quero a luz do dia! Isso, isso! De acordo com a teoria do Multiverso, existem infinitos…

Puxei com mais força e nada. A coisa tentava se aproximar. Dei um passo para trás e o terreno manteve meu pé encalhado. Dei mais um passo e o terreno subitamente estava escorregadio e eu tropecei no chão.

O desespero tomou conta de mim enquanto tentava me levantar sem soltar a Longinus e sem me deixar ser abocanhado pela aberração.

- Cala a boca! Eu quero minhas mãos de volta! Eu te odeio! Por favor, me mata!

Eu estava quase ficando de pé quando a coisa largou a Longinus e, sem apoio, eu retornei para os dejetos no solo. E uma boca agarrou meu pé. E outra mordeu a minha coxa. E toda a minha cintura estava envolvida por carne e dentes. Sem conseguir rastejar, senti meu corpo sendo puxado para dentro da aberração. Percebi que a carne estava pegajosa, tentando se conectar à minha. Logo, só restava meu tronco para fora. E então, apenas meus braços.

É impossível descrever o que eu senti. Tudo me mordia. Tudo era mordido. Os olhos continuavam abertos, pegajosos, vidrados. A carne era esponjosa e repulsiva. E as vozes eram infinitas.

- Bem-vindo. Me desculpa. Mais um, mais um, mais um. Estou com fome!

E então algo do lado de fora puxou a Longinus. Respirei fundo, mas sem alívio. Comecei a me debater enquanto meus dois amigos me puxavam juntos. Quando estava pela metade, a coisa tentou me puxar de volta e eu senti minhas costas se estendendo numa dor alucinante.

Antes que eu fosse engolido de novo, Miguel soltou Longinus, ergueu sua espada de duas mãos e desceu com ímpeto, abrindo uma fenda generosa na aberração. Obstinada, ela me puxou mais. Miguel deu outro golpe e, dessa vez, ela recuou, quase partida ao meio.

Na primeira oportunidade, arranquei um pé de dentro da coisa e comecei a acertar chutes aleatórios até que a outra perna finalmente fosse libertada. Confesso que já não estava raciocinando e tudo que eu queria era fugir dali. Engatinhei pelos dejetos alquímicos ignorando que meus olhos ardiam, que minha boca estava entranhada com um gosto de enxofre e que até meu cabelo estava imundo de substâncias que eu sequer conhecia. Era preferível estar no meio do lixo do que naquele lugar.

Até que eu vi Nimh.

Ela estava paralisada. Apenas as lágrimas confirmavam que não havia virado uma estátua. Enquanto meu instinto berrava por fuga, a menina não conseguia ter reação nenhuma. Apenas olhar para a aberração impossível que tentava nos devorar.

Eu podia correr, ela não.

Eu podia morrer, ela não.

Levantei-me e apontei Longinus para a coisa. Os buracos provocados pelas flechas e as fendas abertas pela espada não eram o suficiente nem para espantá-la. Morreríamos antes de conseguir matá-la com armas.

- Nimh! - Berrei.

A garota pulou para trás como quem é acordada no susto.

- Preciso de um veneno! Agora!

- Qual?! - As mãos da coitada tremiam em espasmos bruscos enquanto ela abria a bolsa. Nada de roupas, apenas frascos.

- Qualquer um - enfiei a mão e catei o primeiro ao alcance.

Aproveitei que meus amigos recuavam, mirei numa boca e arremessei. Acertei em cheio e a coisa mastigou e depois tentou cuspir. Peguei outro frasco e acertei um olho, que se desfez em meio ao veneno e aos cacos de vidro. Catei mais um…

- Espera, esse não é veneno!

Tarde demais, o recipiente já estava no ar quando Nimh terminou de falar. Errei a boca de novo e o vidro estourou e o líquido se espalhou numa das feridas provocadas por Miguel. O que fez todas as bocas urrarem numa cacofonia dolorosa e eu juro que pude ver parte da coisa murchar.

- Seja lá o que for, me dá mais!

Outro frasco estourado bem numa ferida, mais berros e finalmente a coisa começou a recuar. Miguel percebeu o que estava acontecendo, se aproximou, catou dois frascos com cada mão e arremessou tudo nas feridas sem errar nenhum.

Gritos. Dor. Desespero.

Mais arremessos.

Mais gritos. Mais dor. Mais desespero.

Mais arremessos.

Mais gritos.

Mais dor.

Mais desespero.

Mais arremessos.

Mais.

Mais.

Mais.

- Chega! - Miguel gritou e foi a minha vez de pular como quem acorda no susto.

A aberração já estava morta. Não sei há quanto tempo.

Quis coçar os olhos e vi que minhas mãos estavam imundas. Preferi ficar com a visão embaçada mesmo. Infelizmente, naquele momento, a coisa parecia ainda mais nítida.

E também parecia mais aceitável. Ainda grotesca. Ainda impossível. Mas aceitável. Ou era eu que estava me acostumando?

Quando a ideia de aceitar aquilo se passou pela minha cabeça, me senti repulsivo. Logo, a aberração voltou a me causar náuseas e eu me dei conta de que ela permanecia tão inaceitável quanto antes. E que eu não podia me permitir me acostumar com aquilo.

Ninguém disse nada por um longo tempo. Toda vez que eu tentava pensar em como escalar o túnel para a torre, acabava olhando para o cadáver da aberração. Os olhos ainda abertos. Todos eles. Cada um deles.

Eu precisava pensar em outra coisa. Qualquer coisa. Era como se a minha sanidade tivesse fugido de um afogamento e estivesse exausta à beira da praia depois de vomitar água salgada.

Olhei para o outro lado. Respirei. Cogitei rezar.

Não adiantava. Eu não ia parar de pensar naquilo tão cedo. Fugir não era uma opção. Talvez fosse melhor aceitar que o pesadelo era verdadeiro e palpável.

O silêncio começou a se tornar confortável e cruel e eu precisava sair daquele esgoto nem que fosse em pensamentos. Precisava de alguma luz, algum perfume, algum paladar adocicado.

- Afinal - puxei assunto com Nimh -, se aquilo não era veneno, o que era?

Ela precisou de um momento para digerir a pergunta, provavelmente estava ocupada tentando não abraçar a loucura também.

- Era esmalte.


 ***

- Cuidado com a lâmina.

- Eu vivo tendo cuidado com essa porcaria.

Giovan foi o último a subir para o laboratório de alquimia do McKinley. Na verdade, o porão da torre transformado em laboratório. Limpo e organizado. Mesas, livros, frascos e uma centena de coisas que eu não conheço.

Miguel havia me ajudado a escalar para o túnel vertical, eu subi primeiro e não tive muita dificuldade para abrir o alçapão. Depois eles ajudaram Nimh a alcançar a haste da Longinus para que eu a puxasse para cima. Então Miguel veio e Giovan por último. Com eles, não tive o cuidado de estender a ponta sem a lâmina.

- Calmo demais - Miguel resmungou.

- Ninguém imaginaria uma invasão pelo esgoto - Giovan sugeriu.

- Nós imaginamos. McKinley não é burro. Na melhor das hipóteses, ele contou que aquilo fosse proteger essa entrada - falei.

- Que seja. E agora? - Giovan se focou no nosso atual problema.

- Agora eu conheço os corredores - Nimh já estava na escada espiralar. - O primeiro andar é a área social, o segundo é a biblioteca, o terceiro é escritório, o quarto são os cômodos privados e o quinto é mais um laboratório. Um prisioneiro de luxo deve estar num dos quartos de hóspedes.

- McKinley deve estar no escritório - sugeri.

- Se ele planeja nos enfrentar, não vai ser num cômodo importante e cheio de papéis - Giovan me corrigiu. - Deve ter planejado uma cena extravagante, provavelmente num salão de festas ou numa mesa de banquetes. Primeiro andar, onde ele poderia nos enfrentar antes mesmo de chegarmos perto da Lys.

- Vamos todos juntos até termos certeza de onde cada um está. Quando soubermos, nós três pegamos McKinley e Nimh busca a Lys - Miguel comandou. - Melhor não fugir pelo esgoto, só o risco de vocês se machucarem pra descer pelo alçapão já é um problema. Se vocês não conseguirem fugir por outro caminho, nos esperem aqui mesmo. Entendidos?

Todos confirmaram com a cabeça e nós quatro subimos para o primeiro andar, onde tudo continuou calmo demais. Sem guardas, sem monstros, sem armadilhas. A torre parecia estar dormindo. Nem na entrada principal, onde achamos que teria uma guarnição nos esperando.

Vazio.

Até que encontramos um corredor iluminado por lâmpadas a óleo.

- Sala de banquetes - Nimh informou.

- Armadilha - eu disse o óbvio.

- Se quiserem, eu vou sozinho - Miguel se prontificou.

- Nada disso, vamos seguir o plano. McKinley não espera que mais alguém ajude nós três - Giovan deu um passo a frente. - Nimh, tem certeza que não é arriscado demais?

- Sou boa em evitar riscos. Lys estará fora dessa torre em cinco minutos - a jovem continuava tímida, apesar de não ter mais receios na voz.

- Conto com você - Miguel tentava disfarçar o nervosismo. Agora vamos, precisamos matar um mago.

E seguimos para o salão de banquetes.


***

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Em breve, Três Homens em Conflito, a sétima e última parte das Crônicas da Cidade Condenada!