quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Parto

Primeiro dia:

A porta de minha casa se abriu numa pancada violenta. Levei um susto tremendo.

– Ágata! – Era meu marido me chamando.

– Amor!

Ele estava se apoiando com as mãos pelas paredes e com uma expressão angustiante de dor no rosto. Larguei a comida no forno à lenha e corri até ele. Apoiei seu braço em meu ombro e o conduzi até nosso quarto. Pensei que não fosse conseguir chegar até lá de tão pesado e fraco que ele estava. Quando enfim consegui deitá-lo, percebi que ele ardia de febre e suava frio. Entrei em desespero.

– Ágata! Ágata! Minha cabeça! Minha cabeça dói! Pelo amor dos celestiais, faça isso parar! – Ele agarrava minha roupa e me puxava e eu não sabia o que fazer. – Faça isso parar! Faça isso parar! – Ele repetia até que soltou minha roupa e agarrou a cabeça, se encolhendo na cama e gritando de agonia.

Corri para a cozinha e preparei um chá. Foi inútil, pois ele não conseguiu beber. Não conseguiu se sentar e nem comigo servindo em sua boca ele conseguiu engolir.

Derramei chá no meu marido e o sujei todo até desistir.

O drama durou horas. Eu chorava e segurava a mão dele, rezando baixinho para que aquilo passasse. No meio da madrugada, ele adormeceu. A febre continuava alta, mas ele enfim descansava. Fiquei aliviada e dormi também.

Mas, antes, rezei mais uma vez para que aquilo nunca mais acontecesse.

Segundo dia:

Meu marido dormiu o dia inteiro. A febre melhorou, porém ele nem sequer se moveu na cama. Estático. Apenas respirando.

Imaginei que ele estava se recuperando.

Cuidei de meus afazeres domésticos durante o dia e deitei ao seu lado à noite. Adormeci tranquila.

Acordei de madrugada com um barulho na cozinha. Meu marido não estava ao meu lado.

Temerosa, fui verificar o som. Encontrei meu marido arfando e agitado remexendo os armários.

– Amor?

Ele se virou para mim parecendo um animal faminto.

– Onde está a comida?

– Eu preparei uma salada, deve estar fresca ainda, vou buscar.

– Salada? Salada?! Eu estou faminto e você me vem com salada?! Sabe que eu trabalho a merda do dia inteiro e quer que eu coma a mesma comida das lebres?! Onde está a carne?!

Eu estremeci com os gritos dele. Senti vontade de chorar de medo e vergonha.

– Amor, não precisa falar assim...

– Você é uma inútil! – Ele berrou e saiu batendo a porta dos fundos.

Como ele pôde me tratar daquele jeito logo depois de eu cuidar dele? Não aguentei e comecei a chorar – poucas lágrimas, logo passaram. Fiquei esperando que ele voltasse até que o dia começou a amanhecer e eu caí no sono.

Mas, antes, rezei mais uma vez para que aquilo nunca mais acontecesse.

Terceiro dia:
 
Acordei no meio da tarde. Minha cabeça doía um pouco. Devo ter dormido demais.

Levantei e fui até a sala.

Meu marido estava esparramado na poltrona mordiscando um osso. Aparentemente, havia comido uma peça inteira de algum animal. Ele estava sujo de sangue – muito sangue. No seu rosto, na sua roupa, pela poltrona e pelo chão.

– Amor, o que é isso? – Eu não acreditava no que via.

– O que é? – Ele respondeu sem nem olhar na minha cara.

– Essa sujeira toda! Você podia ter me acordado que eu preparava o seu almoço.

– Já que você quer me servir, faz o seguinte: prepara um chá pra mim, a dor de cabeça tá aqui ainda – ele disse apontando para a cozinha, ainda sem dirigir o olhar. Senti-me insultada, mas considerei que ele devia estar doente ainda e fui atender ao seu pedido.

Fui para a cozinha, peguei algumas ervas que ele gosta e preparei um chá bem docinho para agradá-lo. Levei o chá até a sala e ele me recebeu com mais humilhação:

– Pensando bem, pensando bem... Não quero chá porra nenhuma não. Faz um suco aí pra mim.

Não pude aceitar aquilo:

– Isso é jeito de se falar com sua esposa?

– Poxa, amor, seu homem tá doente... Vai negar um suco pro seu homem doente?

Respirei fundo para não brigarmos e voltei à cozinha. Joguei o chá fora, peguei algumas laranjas e comecei a espremê-las para preparar seu suco. Meus dedos já doíam um pouco quando terminei, peguei o copo e levei à sala. Mas ele ainda não havia se cansado de me humilhar.

– Quer saber? Quero mais suco não! Traz uma água! – Ele não aguentou e se pôs a gargalhar. Ria alto e com a boca bem aberta, segurando a barriga.

Meu queixo caiu. Eu não o reconhecia. Ele nunca havia me tratado daquele jeito. Dei as costas e fui para a cozinha. Respirei devagar tentando segurar o choro - eu não podia chorar no terceiro dia seguido. E ele gargalhava.

Quando pensei que eu não ia conseguir e as lágrimas iriam transbordar, ele interrompeu o riso e soltou um gemido doloroso.

Uma única lágrima escapou.

Fui até a porta e espiei meu marido. Ele estava se arrastando pelo chão em direção ao nosso quarto. Segui cautelosamente. Debrucei-me pela porta do quarto e o vi se ajeitando na cama. Corpo encolhido. Mãos na cabeça. Gemidos de dor.
O amor foi mais forte do que o medo.

– Amor?
– Ágata, minha cabeça vai se partir ao meio... Está doendo muito... Faz... Faz isso parar...

E mais um dia se passou na cama com dores e lágrimas.

Dessa vez, esqueci de rezar.

Quarto dia: 
Acordei cedo e meu marido não estava na cama novamente. Procurei pela casa e não o encontrei. Fiquei aflita. Ele estava doente, não podia sair de casa sem me avisar.
Sentei na poltrona e senti o cheiro de sangue seco. Peguei um balde de água e um pano para tentar limpar. Enquanto eu esfregava, a porta da casa abriu numa pancada e meu marido entrou. Suado e ofegante. Pelo visto, havia trabalhado.

– Amor, onde você estava? Você não pode sair assim?

– Fui trabalhar. Alguém tem que cuidar dessa casa.

– Mas você está doente, amorzinho, não pode sair desse jeito.

– Sua voz é irritante, sabia?

Engoli em seco.

– O quê?

– Isso mesmo que você ouviu! Sua voz enche o saco!

– Amor, o que há de errado com você?

– Uma esposa imbecil, é isso que há de errado comigo!

– Mas, amor... – Eu não queria mais brigar e faria de tudo para acabar com aquilo. Fui até ele e abri os braços para abraçá-lo. Ele virou a mão na minha cara.

Foi um soco, na verdade. Um soco que me jogou no chão. Primeiro a pancada seca no meu olho esquerdo, depois a tontura e sensação de vazio da queda e então o chão e a batida de cabeça contra a madeira. Tudo doía. O olho, a cabeça, a dignidade e a alma.

– Cansei dessa merda! Cansei de você! Cansei da sua burrice e das suas palhaçadas! Sai da minha frente!

Ele me apanhou pelo cabelo, me ergueu do chão e me arremessou para nosso quarto.

Cai ao pé da cama, ralando os joelhos e os cotovelos e batendo com a cabeça contra o chão mais uma vez. Ouvi a porta batendo enquanto me recuperava das novas dores.

Primeiro veio o soluço. Depois um instante de silência. E as lágrimas. Eu chorava. Eu apenas chorava.

Um dia inteiro chorando.

Quinto dia: 
Meu marido não entrou no quarto. Acordei e a casa estava em silêncio. Ele havia saído de novo. Achei melhor assim. Depois, fiquei triste por preferir estar longe do meu marido, mas continuei achando melhor.

Fui para a horta fazer o meu trabalho. Levei apenas a cesta e o chapéu. Mal havia começado a colher alguns tomates e ouvi um barulho de coisa quebrando vindo da casa.

Meu estômago gelou.

Outra pancada. Sons de vidro se espatifando. Depois, sons de madeira rachando. Sons da casa sendo destruída por dentro. Fui até a porta dos fundos e espiei.

Meu marido havia enlouquecido. Ele estava quebrando a casa. Chutando os armários até afundar o pé na madeira. Pegando vasos e arremessando contra a parede. Pegando gavetas de talheres e quebrando contra o joelho.

Mas ele não parecia só louco. Ele parecia maior. Os músculos pareciam quase rasgar a pele, muito maior do que sempre foram. E a pele estava estranha também. Estava pálida.

Quase acinzentada. Ele me olhou. Prendi a respiração. Seus olhos pareciam menores e mais escuros, com olheiras fundas e negras ao redor. Sua expressão era bestial.

Primeiro, pareceu que não me reconhecia. Depois, entendi que ele havia reconhecido sim, e que havia odiado o que estava vendo. Ele veio para cima de mim e eu corri.

Apenas corri.

Sexto dia:

Acordei no meio da estrada e percebi que havia desmaiado. Corri muito além do que o raciocínio me permitiria e acabei apagando por exaustão. Minhas pernas ainda doíam de esforço e meus pés ardiam, completamente esfolados. Pensei que fosse de noite, mas percebi que o sol começava a amanhecer e entendi que já era o dia seguinte. Levantei-me e segui pela estrada de volta para minha casa. Mancava, mas isso era o menor dos meus problemas.

A casa estava vazia e destruída. Estava tudo quebrado. Tudo. Não há como descrever o que havia pelo chão porquê não havia nada na casa. Só destroços.

Fui até o que havia sido a cozinha, peguei uma faca no chão e a segurei com firmeza. Fui até o que havia sido meu quarto e sentei no colchão que havia sido parte da cama. E esperei meu marido chegar.

Mas ele não chegou.

Quando anoiteceu e eu percebi que ele não apareceria, fiz o que tinha que fazer:

Levantei-me e comecei a andar. Segui a estrada e caminhei sem parar. No meio da madrugada, alcancei a cidade e procurei uma taverna. Era lá que eu encontraria a solução de todos os problemas.
  
Sétimo dia:

Os quatro aventureiros pagaram a minha janta e o meu quarto numa estalagem. No dia seguinte, fomos até a minha casa. Mostrei tudo e contei tudo para eles. Eu estava determinada até começar a falar. Fui lembrando e fui me fragilizando e chorei. Eu não devia ter chorado, não na frente deles. A única mulher do grupo, uma elfa que trajava um longo robe e portava um pesado tomo nos braços, me abraçou e me acalmou. Ainda com o rosto molhado de lágrimas, terminei de contar a história.
Eu havia dito que precisava deles para matar um monstro, mas já não queria aquilo.

Eu queria salvação.

– Vocês podem? Podem salvar o meu marido?

Eles se entreolharam.

– O que acham? – Perguntou o homem de armadura de metal e espada e escudo nas costas.

A elfa abaixou a cabeça e deixou escapar uma expressão de tristeza em seu rosto:

– O estágio está avançado demais. Agora, é irreversível.

Segurei as lágrimas.

– Como isso pôde acontecer? – Perguntei sem querer aceitar os fatos.

A elfa hesitou, mas foi sincera:

– Provavelmente ele foi longe demais na floresta e deu o azar de encontrar uma fada negra. Às vezes, elas conjuram magias de ilusão ou necromancia para assustar ou machucar as pessoas. Às vezes, elas decidem se hospedar na vítima. A fada entrou pela orelha ou pela boca dele e ele começou a se transformar num monstro. Agora, eles são um só.

– Um troll... – Lamentei.

– Isso mesmo, um troll – ela confirmou.

Eu não sabia o que era necromancia, nem entendia nada de trolls. Apenas sabia que monstros existiam e que eles matavam pessoas – e sabia que meu marido preferiria morrer do que ser uma coisa dessas.

– Então, façam o que tiver que ser feito – declarei sem coragem de olhar para nenhum deles.

Permaneci de olhos fechados e rosto virado. Logo, os aventureiros começaram a andar e saíram do que restou da casa.

E eu chorei.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Regiões e Reinos - A Liga Prateada

A Liga Prateada

Os reinos Solar, Turnnin e Dellarte formam esta coligação comercial e militar, estabelecendo paz, diplomacia, favorecimento mercantil e a garantia de apoio dos exércitos amigos em caso de conflito externo. As fronteiras internas da Liga são conhecidas como as mais seguras do continente.

História: Há séculos uma guerra foi travada em busca de um artefato sagrado: a Guerra da Cruz. Começou com pequenos grupos explorando masmorras em busca da relíquia. Então, alguns começaram a deixar o escrúpulo de lado e as autoridades tiveram que interceder. O ato foi visto como crime pela nação natal dos criminosos e tropas foram enviadas com a missão de encontrar a Cruz a qualquer custo. Solar e Dellarte foram os principais alvos e batalharam tanto para defender seus territórios, quanto para evitar que o artefato caísse em mãos erradas. Toda a região foi o palco da guerra e incontáveis batalhas foram travadas entre quase uma dezena de reinos. Ao final, um grupo de heróis encontrou a Cruz, que ficou em posse do clérigo, que se tornou sumo-sacerdote e regente de Solar. A paz foi restaurada, mas a custa de milhares de vidas e da desconstrução de vários reinos. Posteriormente, cidades se reergueram e se formaram do zero, unificando Turnnin.  

Relações: Os reinos têm um pacto de benefício aos membros e padronização das relações externas à Liga. Como tal acordo é bastante maleável, não houve nenhum caso registrado dele ser desrespeitado. Naturalmente, os reinos ainda tiram vantagens das relações vizinhas mais próximas. Quem sai na desvantagem é Solar, por não ter reinos próximos favoráveis além dos membros da Liga. A maior beneficiada é Dellarte, por ser próxima da República Branca, Aruanda e da União a Vapor, todos bons aliados comerciais, se tornando o reino mais rico graças às suas boas relações e aos acordos.

Terras: A região da Liga é vasta e rica em todo tipo de vida, com colinas concentradas ao oeste, florestas ao centro e planícies ao leste. Um dos “tentáculos” do Rio Kraken corta os três reinos e serve de rota comercial marítima. Ao leste da Liga fica a gigantesca Floresta Feérica, ao sudoeste fica o Vale Perdido, ao sudeste o União a Vapor, ao oeste a República Branca e Aruanda e ao norte Centrália.

Reinos:

Solar, o Reino Abençoado: As lendas contam que um celestial solar tenha ajudado a erguer a primeira cidade e que o mesmo foi seu protetor até os dias da Aniquilação, quando o guardião partiu para a guerra e não retornou. Cidades: Pena Dourada (capital), Aura, Aurora e Auréola.

Turninn, o Reino das Torres: A vigília do reino é feita principalmente através de torres e a própria família real vive na maior delas, localizada no centro da capital. Cidades: Babel (Capital), Gálata, Pisa, Fernsehturm.

Dellarte, o Reino da Beleza: Autointitulada o reino mais sofisticado e refinado do mundo, Dellarte é um exemplo inigualável de cultura e arte. Os maiores trovadores, dramaturgos, escultores e pintores têm, de uma forma ou de outra, suas histórias conectadas a este reino. Cidades: Calíope (capital), Clio, Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore, Urânia.

sábado, 31 de outubro de 2015

Fúria e Terror

Orcs! Orcs por toda parte!
Um deles veio girando uma clava na direção da minha cabeça - aposto que nem ele sabia se no pescoço, na mandíbula ou no cenho. Só sei que me agachei e perfurei seu estômago com a minha espada. Eu tremia inteiro. Meu golpe foi tão mal direcionado quanto o dele, com a diferença de que tive tempo de prepará-lo enquanto o bruto gritava e corria. O maior obstáculo era lutar na tênue luz da noite.
Eu não tremia por ter matado alguém. Já havia caçado goblins e sabia da existência de orcs, apesar de nunca tê-los visto até agora. Um palmo maior do que qualquer um da minha caravana, pele cinzenta, dentes acavalados, orelhas deformadas, focinho em vez de nariz, músculos e fedor. Quase vomitei quando seu abdômen vazou pelos meus pés, mas não tive tempo para me enjoar, porque já tinham mais dois vindo.
Respirei fundo e tentei me preparar melhor desta vez. Eles chegaram com seus machados prontos para me fatiar e eu me joguei para a esquerda, evitando ser cercado. Enquanto sentia o vento sendo cortado pelo golpe inimigo, abri um corte da cintura até a costela do meu agressor, fazendo-o desfalecer em agonia junto do seu camarada no chão. O terceiro nem esperou seu amigo morrer para me atacar. Foi fácil esquivar da machadada com o outro orc ainda de joelhos entre nós. Não querendo arriscar um combate direto, chutei o moribundo contra o meu adversário, fazendo-o tropeçar nos outros dois. Antes que ele se levantasse, acertei dois golpes nas suas costas, terminando de montar a pilha de cadáveres à minha frente.
Eu não tinha orgulho de nada daquilo, mas era eu ou eles.
Ouvi um grunhido atrás de mim, me virei assustado e vi um orc de joelhos com uma flecha no pescoço. Não parei para procurar o meu salvador, mas agradeci mentalmente. Olhei ao meu redor e vi um dos mercadores que eu escoltava sendo jogado no chão por três dos inimigos.
Avancei e estoquei contra o mais próximo de mim, penetrando a minha espada na sua axila. Um erro, pois perdi tempo demais retirando a minha arma do morto. Tropecei enquanto evitava um golpe horizontal de um machado, ergui meu escudo, que quase se partiu ao meio com o impacto que recebeu e tentei aparar um terceiro ataque com a minha espada, mas a arma dele foi mais eficiente e partiu a minha lâmina, quase arrancando a empunhadura - e a minha mão - junto. Mais por desespero do que por raciocínio - raciocínio nenhum, para ser sincero -, encravei o cotoco da espada no olho do orc, que gritou de dor e acertou o cabo do machado no meu tórax como reflexo final antes da morte.
Caí de costas e, antes de me levantar, já tinha uma bota acertando o meu ouvido. A parti daí, não sei dizer quanto tempo se passou, enquanto a minha visão estava embaçada pela tonteira, o meu ouvido zunia e meu cérebro latejava dolorosamente. Devo ter me contorcido de dor e cuspido lama enquanto tentava entender se meus sentidos estavam voltando, ou se eu já estava morto e entrando na pós-vida. Talvez, a segunda opção teria sido mais doce.
Pois meus sentidos voltaram e eu comecei a enxergar corpos pelo chão. Alguns de orcs. Muitos de humanos. Companheiros de viagem e clientes assassinados. Possíveis futuros amigos. Pude ver meia dúzia de sobreviventes rendidos, como eu.
Olhei para cima e vi uma maça-estrela apontada para o meu rosto. Empunhando a arma, um orc de mais de dois metros de altura. Ele era feio demais, mas acredito que estava rindo.
E entre as risadas, pronunciou com uma voz gutural:
- Escravo.

***

Eles não tinham correntes para nos algemar. Em vez disso, pegaram cordas e improvisaram amarras entre nossos punhos e tornozelos, forçando-nos numa fila. O saque foi rápido. Pegaram o que achavam que tinha valor e dispensaram o resto. Deixaram as carroças onde estavam, sem se preocupar em ocultar o ataque.
Sem nos dirigir palavras, nos puxaram pela corda e nos guiaram pelo bosque. Caminhamos pela mata selvagem por cerca de duas horas até chegarmos numa caverna. Pude ouvir o choro de uma mulher quando nos aproximamos da entrada. Os orcs ignoravam.
Até que o grandalhão da maça-estrela se aproximou de mim.
- Por que vocês sempre choram?
Estudei o patife por um momento. Era alto e musculoso, totalmente abrutalhado. Seus olhos eram vermelhos, seu rosto era gorduroso e murcho e faltava-lhe uma orelha. Talvez feio entre os feios.
- Ela está assustada.
O orc deu de ombros.
- Vocês não se assustam quando nos matam.
Ponderei se era arriscado demais contrariar meu raptor.
- Acho que ela nunca matou ninguém.
- Então é fraca.
- Então deixe-a ir. Ela não terá serventia se for fraca.
- Ela é gorda. Isso vai servir.
Engoli em seco pensando no que isso poderia significar.
- Sabe como um humano sai de um calabouço orc?
Ele parecia estar se divertindo.
- Pelos nossos excrementos - e riu consigo mesmo enquanto adrentrávamos a escuridão do túnel subterrâneo.

***

Eu imaginei um monte de coisas. Que seríamos o banquete da noite. Que seríamos torturados só por diversão. Que seríamos sacrificados num ritual profano. Mas recebemos ferramentas e nos enfurnaram numa mina de ferro. Pelo o que pude entender, nem passamos pela aldeia dos orcs, fomos direto para a escravidão.
Andamos pelos menos uma hora por corredores escuros. Nossos captores não usavam tochas e nem desaceleravam os passos, o que dificultou muito a caminhada. Perdi a conta de quantos tropeços e topadas eu dei pelo caminho. Na mina, mais quatro humanos. Não pareciam mal alimentados, mas fatigados e à beira da insanidade. Ainda assim, dóceis e obedientes. Ali, havia duas tochas. Pouco para nos dar o conforto que nossos olhos precisam, mas uma enorme concessão para podermos trabalhar com mais eficiência, pelo visto.
Sem muitas opções, comecei a trabalhar.
Não sei quanto tempo eu fiquei com a picareta na mão. Só sei que nenhum plano de fuga digno de esperanças me veio em mente. Éramos dez humanos, mas apenas três parecíamos em condições de lutar. Todos estávamos cansados e/ou com fome. Pelas minas, dois guardas vestindo armaduras de couro e portando um machado de batalha cada vigiavam o trabalho e mais um patrulhava os arredores. Só teríamos picaretas e tochas como arma, muitos morreriam no primeiro combate e ainda havia dúzias de corredores desconhecidos para a fuga, isso se nenhum humano se acovardasse, o que era outra ideia ridícula. Minha fuga teria que esperar.
Minha boca estava seca, mas o único humano que ousou pedir água recebeu um soco na cabeça em resposta. Outros dois tentaram conversar entre si e foram agredidos também. Pelo o que pude perceber, aqueles não falavam nosso idioma e respondiam qualquer palavra com surras. Além da boca seca, o calor era abafado e castigante e os braços doíam como eu não imaginava que seria possível. Cada olhar trocado entre os cativos transbordava desespero.
Depois de muitas horas, um de nós desmaiou. A mulher correu até ele para socorrê-lo. Porém, quando um dos guardas se aproximou, ela preferiu retornar ao seu trabalho. O orc pegou o desmaiado pelo cabelo e puxou até o centro daquele salão. Eu não acreditei quando ele sacou o machado.
E decapitou o homem.
A mulher não se conteve e gritou de horror com a cena. Cada um de nós interrompeu o trabalho por um instante enquanto o corpo convulsionava pela última vez e uma enorme poça de sangue se espalhava pela pedra suja. O fedor foi intragável e um de nós vomitou. Os quatro veteranos da mina pareceram menos espantados.
Os dois guardas aproveitaram para contemplar nossas reações, saboreando a cena. Então surgiu uma breve expressão de impaciência e voltamos à picareta e à pedra.
Eu tinha medo.
E a mulher continuou chorando.
Por sorte, alguns instantes depois o orc sem uma das orelhas retornou. Olhou o cadáver, sorriu e disse:
- Chega por hoje. Venham. Você e você, carreguem o corpo. Você, carregue a cabeça.
Tive pena dos escolhidos para o serviço fúnebre.
E a mulher continuou chorando.

***

- Por que mataram o homem que desmaiou? - Ousei perguntar.
- Fracos morrem - como se fosse a coisa mais natural do mundo.
E talvez fosse.

***

Não era uma aldeia. Era uma cidade inteira. Uma droga de uma cidade inteira!
Centenas de orcs caminhavam pelos túneis, que chegavam a quilômetros de largura e dezenas de metros de altura. Não faço ideia do quão longe eu estava do mundo de cima. Sabia apenas que estava entre criaturas ferozes e menos desorganizadas do que eu esperava. O comércio era feito em barracas improvisadas, havia túneis que aparentavam ser residências e até milicianos circulando pelos corredores. Aquilo era uma cidade. Talvez com mais de mil habitantes. A apenas três dias de viagem a pé da minha terra natal. Dois dias a cavalo - talvez apenas um. Felizmente, aqueles orcs não pareciam valorizar montarias.
Fomos levados até um buraco no chão no fundo de um corredor.
- Quem torcer a perna, perde o pescoço - foi o único aviso do sem-orelha.
E o primeiro foi empurrado para baixo.
Um a um, nós fomos conduzidos para o buraco e eu não sabia se estava temeroso ou curioso. Talvez já fosse hora de aceitar a morte.
Tomei cuidado quando chegou a minha vez de pular e não machuquei os pés na queda. E descobri o cárcere.
Os olhos já estavam mais acostumados com a completa escuridão do subterrâneo, por mais que fosse impossível se adaptar por completo. Calculei vinte humanos no total, talvez um pouco mais. O lugar fedia a detritos. As lamúrias indicavam luto. Luto por si mesmo.
- Bem-vindos - uma voz áspera se pronunciou. E eu teria estrangulado o maldito se soubesse onde ele estava.

***

No segundo dia de escravidão, ninguém desmaiou. Recebemos refeição na própria mina, antes de começarmos com as picaretas. Era uma carne seca e crua, de gosto acre. Provavelmente as partes menos valorizadas de um mamífero pequeno, apenas o suficiente para manter os trabalhadores com alguma disposição. E uma bacia de água coletiva para bebermos com as mãos, como os veteranos rapidamente demonstraram.
Tentei calcular as horas, mas foi impossível. Medi a primeira meia hora com o ritmo da picareta, até me desconcentrar num plano de fuga e não consegui me ater a nenhum dos dois. Eu começava a odiar os orcs a um nível pessoal. Começava a me odiar por não ter fugido quando o saque começou. E começava a odiar a gorda chorona.
O sem-orelha deu as caras algumas vezes naquele dia. A presença dele causava um transtorno geral nos escravos. Talvez porque ele aparentava alguma autoridade naquele povo. Talvez porque ele sabia falar nossa língua e poderia decidir nos torturar psicologicamente. Talvez só porque ele era um orc a mais nos vigiando.
Quando eu comecei a imaginar métodos de suicídio, o sem-orelha anunciou o fim do expediente.
No caminho, ele decidiu se divertir conversando comigo.
- Gostei de você.
- Então me deixe ir embora.
- Aqui, não presenteamos quem gostamos. Aqui, damos mais trabalho pra quem gostamos.
- É mesmo? Vai me dar uma picareta melhor?
- Tava pensando em botar humanos pra se matarem. Você poderia ser o campeão da arena! - E riu.
- Isso me enoja - eu já estava torcendo para ele perder a paciência comigo de uma vez e encerrasse a minha vida.
- Por quê? Não existem arenas nas cidades humanas? Se vocês podem fazer isso, por que orcs não podem?
- Prefiro morrer.
- É mesmo? Por que não enfiou a picareta na própria garganta ainda? Você não parece do tipo covarde. É do tipo mentiroso? Não vai dizer que tem esperança?
Abaixei a cabeça. Estava começando a entender que responder só divertia ele ainda mais.
- Você tem sorte. A estadia de vocês vai durar pouco aqui, se tudo der certo.
- Tudo o quê?
- As negociações. Anda, por aqui.
O grupo de escravos e guardas desviou do caminho para o buraco-sela. Em vez disso, chegamos a um cômodo que lembrava um açougue. Antes de poder ficar feliz com a morte, percebi que seríamos pesados numa balança rústica feita de cordas e pedras. Um por um sentamos na rede e fomos pesados por blocos irregulares. Aparentemente, valores aproximados bastavam. Um orc que tinha um pergaminho feito de pele de algum bicho e um pedaço de carvão registrou os valores. Senti-me um idiota de não imaginar que orcs não sabiam contar. Uma raça capaz de caçar, forjar e criar gado com certeza saberia alguma matemática, ao menos seus princípios. O suficiente para pesar humanos. Só faltava descobrir a troco de quê.

***

No caminho para o buraco, o sem-orelha voltou a falar:
- Gosto de humanos.
- Não sei se gostar e matar combinam.
- Você não gosta de bois, galinhas e porcos? E não come eles?
Fechei os olhos e me perguntei por que continuava respondendo.
- Humanos e orcs têm muito em comum.
- Eu duvido.
- Não seja ridículo. Lógico que temos. Você já matou orcs?
- Só aqueles que me atacaram ontem.
- E humanos?
Engoli em seco.
- E humanos? - Ele insistiu num tom soturno dessa vez.
Reuni um bocado de coragem.
- Sim, também já matei humanos.
- É isso que temos em comum. Orcs e humanos têm as mãos sujas de sangue de todas as raças, até mesmo da própria! A diferença é que vocês não reconhecem o quão podres são.
E me empurrou para o buraco.

***

Passei o dia seguinte inteiro imaginando porque havia sido pesado. Não seríamos gado ou rebanho, pelo visto. Talvez comida, mas não parecia haver necessidade de calcular o peso de comida. Talvez fossem nos identificar pelo peso, o que também não me convenceu.
Até que eu tive um palpite.
No final do dia, quando minhas mãos já estavam completamente esfoladas e meus joelhos já não conseguiam parar de tremer de tanto esforço, tive uma pressa especial em voltar para o buraco.
Assim que pulei para dentro, perguntei:
- Há algum nobre aqui dentro?
- Eu - a voz áspera que eu quis estrangular se pronunciou.
- Por que nos pesaram? - Fui direto ao assunto.
Ouvi um suspiro.
- Seremos trocados.
- Ouro?
- Lógico que não, ouro não tem valor aqui. Por aço.
- E todos sairemos daqui?
- Assim espero.
- Quando?
- Não sei. Acho que eles querem acumular peso o suficiente pra troca valer a pena.
- E desde quando orcs trocam reféns por pagamento?
- Desde que eu fiz a oferta, acredito. Um de nós foi liberto ontem pra levar a proposta até a minha cidade. Devem pedir o nosso peso em aço de boa qualidade.
Então havia esperança.
- Obrigado.

***

No quarto dia, mais um desmaiou.
Os orcs discutiram pelo direito de executá-lo. Quando se resolveram, o orc mais alto foi até o desfalecido e pisou na cabeça dele. E pisou de novo. E de novo.
Eu preferiria que ele tivesse usado o machado. Talvez não fosse divertido o suficiente repetir o mesmo método. Impressionar os outros escravos era mais importante do que executar o fraco. O orc pisou e chutou a cabeça e o pescoço da sua vítima enquanto o seu fôlego permitiu. Foram longos, dolorosos e bizarros minutos. Indigestos. Quando tudo o que sobrou foi uma massa deformada e sangrenta, o guarda sorriu para seus vigiados.
Entre o medo e o nojo, nós voltamos a trabalhar.

***

Não teve trabalho no quinto dia. Todos os humanos foram levados para o bosque. Os olhos arderam com a luz do sol. Pude sentir a tensão pelo corpo diminuir gradualmente, conforme nos afastávamos do subterrâneo e da cidade orc. Eu já planejava a minha vingança.
Paramos numa clareira e o sem-orelha mandou deitarmos no chão, ainda amarrados. Minhas esperanças diminuíram naquele momento.
Deve ter se passado uma hora ou duas de espera. Toda uma tropa orc nos escoltava. Éramos vinte e três humanos e trinta orcs. Vinte foram barganhar o resgate. Dez ficaram para nos guardar. Se não fossem as amarras, a falta de armas, a fome e o cansaço, seria fácil eliminar os vigias. Mas predadores não permitiriam que suas vítimas tivessem qualquer oportunidade. Quando um orc voltou, ele e o sem-orelha discutiram brevemente. Então, ouvi sua voz gutural:
- Os humanos trouxeram menos aço do que o combinado. Ficar com escravos não me interessa. E seria injusto devolver escravos que não foram pagos, não acham? Já que eles não cumpriram o trato, sou obrigado a dar um jeito pra que a troca seja justa. Antes de mais nada, quem tentar correr, morre!
Eu espremi meus olhos contra a grama desejando que aquilo tudo acabasse logo. Então, ouvi um grito. Alto e desesperado. Do homem de voz áspera. Ele gritou e gritou e gritou. E outo grito veio em seguida, no mesmo tom de agonia e dor. Os reféns começaram a chorar e implorar. Eu olhei ao meu redor tentando buscar uma saída. Que se dane os outros vinte e dois que estavam ali comigo, eu queria sair daquilo de uma vez. Egoísmo é feio na hora de dividir uma janta, mas não na hora de salvar a própria vida. Havia orcs por toda parte e eu estava preso aos outros. Seria impossível fugir sem ser encurralado antes.
Uma mulher se uniu aos berros desesperados. Depois, outro homem logo ao meu lado. Entre lamentos e grunhidos, pude identificar algumas palavras.
- Minhas pernas! Minhas pernas!
Quando tentei me espernear para tentar fugir inconsequentemente, uma mão me agarrou.
- Uma pena, eu gostava de você - o sem-orelha ironizou.
Então senti uma machadada no meu joelho. Eu berrei com toda a força que meu pulmão permitiu. E outra machadada e meus ossos já estavam comprometidos para sempre. Uma terceira machada e eu já não sentia mais o meu tornozelo, apenas dor. Meu rosto se desfez em lágrimas, baba e berros enquanto eu sentia meu joelho sangrando intensamente. O outro não foi poupado. Os urros de dor se renovaram. Eu pude sentir cada osso estalando e trincando com as machadadas. Depois da terceira, minha perna ainda não havia se descolado por completo. O orc não quis se dar o trabalho de usar o machado mais uma vez, agarrou meu calcanhar e deu um puxão que doeu mais do que qualquer lâmina, terminando de arrancar a minha perna.
E eu berrava.
E ele ria.
- Agora sim os humanos estão com o mesmo peso do aço.
E eu berrava.

***

Fomos abandonados naquele estado pelos orcs. Nossos malditos salvadores nos encontraram e ficaram chocados com a cena de vinte e três humanos amarrados no chão, sendo cinco deles aleijados. Três não suportaram até o resgate chegar e morreram de hemorragia.
Eu fui um dos infelizes que sobreviveram.
Fomos levados de volta à cidade em carroças.
Falaram em vingança. Falaram em justiça. Falaram até em perdão.
É nessas baboseiras que as pessoas pensam quando são derrotadas. Como se alguma coisa fosse importar.
Não serei eu que arrancarei a cabeça do sem-orelha, pois ele arrancou as minhas pernas.
Pois, nada mais importa depois que conhecemos os verdadeiros monstros.
Nada mais importa quando você é um inutilizado.
Apenas a certeza de que as histórias onde os mocinhos sempre vencem são apenas um bando de mentiras criadas para agradar os frouxos que não têm coragem de saber como é a verdade.
A verdade é que os monstros moram ao lado. E estão prontos para a vitória, se você não for forte.