quinta-feira, 24 de março de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: O Olho do Tigre

Ei! Esta é a terceira parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a segunda parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.

***

Rogerus

Nós não somos heróis. Somos mercenários, uma coisa muito diferente. Essa cidade sempre nos ofereceu serviço e poucas leis. Era divertido. Até o Sindicato Informal chegar. Com certeza uma organização criminosa como essa só nasce graças a um regente frouxo, e era o caso do tio do Miguel. Ele permitiu que o tráfico de alucinógenos e que a jogatina se tornassem a principal forma de entretenimento, até que o povo começou a perceber que podia fazer o que quiser, que a lei não seria aplicada. Os miseráveis se tornaram violentos e os prósperos se tornaram insaciáveis. Até que o Sindicato organizou o crime e tomou o controle da cidade.

Agora Miguel quer corrigir os erros do seu antecessor. Se o conde for tolo como o seu tio, não vai sobreviver até o próximo mês. Se for astuto, é do lado dele que eu vou querer estar quando a guerra contra o Sindicato começar.

- Chegamos - anunciei.

É lógico que eu precisava testar o nobre primeiro.

- Por que estamos numa taberna? - Miguel estava impaciente.

- Esses são os meus termos. Você me ajuda a resgatar a minha arma e eu te ajudo a resgatar a sua filha.

- Quem me garante que isso não é uma armadilha?

- A gente não precisa de uma armadilha - Giovan parecia entediado. - Se quisesse, você já teria sido entregue pro Denali McKinley. E vê se não esquece que eu tenho a minha exigência também.

- Não temos muito tempo, droga - o que o conde tinha de grande, tinha de resmungão.

- Temos a noite inteira pela frente. É só entrar, resgatar minha arma e sair. Daí a gente vê o que o Giovan vai querer e depois vamos encontrar a sua filha.

- Uma arma não pode ser tão importante, eu mando fazer uma ainda melhor pra você amanhã mesmo.

- Outra arma não seria a minha arma. Preciso dela.

- E por que eu nunca ouvi falar desse tal de Yojimbo que você quer tanto encontrar?

- Porque ele não é humano, por isso prefere atuar por detrás das cortinas.

O conde fez uma careta que deixou o seu rosto ainda mais feio.

- Vamos acabar logo com isso - ele se decidiu.

- Tudo bem, então. Estão vendo aquela porta ali? - Giovan apontou. - É o armazém, o único lugar que não deve estar lotado de capangas agora. Só tem quatro guardas na porta, vai ser moleza. Eu e o Rogerus damos conta deles e você fica de vigia e avisa se chegar reforços. Quando os quatro estiverem no chão, você vem e a gente entra.

- Posso ajudá-los no combate - Miguel ofereceu.

- Até você chegar com essa armadura, um dos guardas já chamou reforços e não vai dar pra nós três pegarmos a gangue do Yojimbo inteira de uma vez só.

- E esse tal de Yojimbo? Cadê ele?

- Com sorte, está contando dinheiro ou chapado de narguilê. Vamos.

Eu e o meu parceiro avançamos o mais silenciosamente possível até uma lateral da taberna onde não havia ninguém por perto. Faltando alguns metros até a construção, afundei a haste da minha lança no chão, peguei impulso e saltei para o teto. Sem perder tempo, estendi minha arma para Giovan e ajudei-o a escalar a parede.

No teto, demos a volta tomando cuidado para não tropeçar na cerâmica até a porta do armazém. Dois guardas logo na entrada e dois mais afastados. Eu e Giovan nem precisávamos trocar palavras.

Saltei e encravei a lança no trapézio de um dos guardas, sem afundar demais para a ponta não ficar presa. Enquanto o seu corpo desfalecia, aproveitei a surpresa do outro, girei minha lança e acertei a ponta da haste no topo da sua cabeça, causando um impacto ruidoso e derrubando mais um capanga.

Olhei ao meu redor e já havia uma flecha em cada um dos outros vigias, enquanto conde Miguel se aproximava ao longe. Giovan desceu do telhado, vasculhou os corpos procurando pela chave sem sucesso, então sacou um par de alfinetes e começou a cutucar a fechadura da porta.

- É melhor esconder os corpos - Miguel alertou.

- Pode começar a carregá-los, então - o nobre parecia não gostar de ser tratado como uma pessoa comum, mas dane-se, eu não era o seu cavaleiro juramentado.

Não sei se ele queria impressionar alguém, mas o nobre arrastou dois corpos ao mesmo tempo, um com cada mão, enquanto eu cuidei dos mais próximos um de cada vez. Assim que ouvimos o estalo da fechadura e o leve ranger da porta, puxamos os quatro para dentro do armazém.

Por dentro, havia poucas tochas, nenhuma acesa, e muitas janelas, permitindo uma penumbra suave. Vários barris e caixotes se espalhavam, deixando a tarefa de esconder os corpos fácil - pelo menos, levaria algum tempo até encontrá-los. O cheiro de especiarias era forte, só não sei dizer o quanto era tempero e o quanto era fumo. Se minha arma não estivesse ali, estaria junto dos pertences pessoais de Yojimbo, o que complicaria tudo.

Acendi uma tocha e dei uma volta no salão. Era espaçoso, porém apertado por tantos recipientes. Com tantos produtos viciantes, fazia sentido o sucesso daquela taberna. Quando me conformei que minha arma não estava ali, ouvi a voz grave e ruidosa de Yojimbo:

- Ora, ora, o que nós temos aqui?

Giovan e Miguel me olharam imediatamente.

- Ainda dá tempo de fugir, se quiserem. Eu não vou embora sem minha arma - sussurrei.

Meu amigo deu meia volta e começou a escalar os caixotes. Eu sabia que ele não iria me abandonar. Em vez disso, procurou por terreno elevado para dar cobertura. Miguel prontamente sacou sua espada. Do tamanho de um homem adulto, a lâmina resplandecia ao luar, uma visão deslumbrante. O homem tinha palavra. E quem não teria para salvar a própria filha?

- Não bastava os ratos, agora temos criaturas piores invadindo o meu estabelecimento - o sotaque do criminoso ainda era forte, o que destacava sua personalidade fétida. - Vamos. Mostrem seus rostos e eu poupo suas vidas.

- Apague a tocha - sussurrei para Miguel.

- Eu chamo a atenção e você pega eles de surpresa - o nobre disse antes de correr para o outro lado do armazém, fazendo a luz refletir pelos corredores de caixotes. Imediatamente, passos ecoaram na mesma direção.

- Quem será que está aí? Ladrões de galinhas não conseguiriam arrombar o meu estabelecimento. Será que é um cãozinho de caça do novo conde? Ou será um lacaio do Denali?

Enquanto Miguel atraía os capangas, eu tive uma ideia melhor do que cercá-los. Um passo de cada vez, posicionei-me e pude ver uma dúzia de homens passando em direção ao nobre. Esperei e entrei pelo corredor de caixotes depois que eles sumiram.

- Dá tempo de fugir ainda, também. É a segunda opção mais prudente depois de se render - Yojimbo se divertia.

Ouvi um gemido e um tombo. Então um segundo e um terceiro. Pela distância entre os barulhos, só podia ser Giovan dando conta de alguns capangas. Sem o meu amigo para nos dar cobertura, não teríamos nenhuma chance.

- Esquece a rendição e a fuga. Vocês vão morrer aqui - o criminoso se cansou.

Do outro lado do armazém, ouvi o som de metal colidindo. Miguel havia começado o trabalho com os outros capangas.

Apressei-me e encontrei o meu inimigo. Ele estava cercado por seis guarda-costas vestindo armaduras de aço e portando espadas longas. O próprio vestia sua estranha armadura lamelar, de placas retangulares atadas em filas horizontais. Eu jamais esqueceria daquele rosto. Focinho felino, finos lábios negros, presas afiadas, pelugem cinzenta por todo o corpo. Seus olhos verde-água brilhavam na penumbra como um predador preparando o bote.

Em suas mãos, a minha arma. Longinus era a minha glaive, uma lança com uma lâmina curvada do tamanho de uma espada curta em vez de uma ponta, útil tanto para perfurar quanto para cortar. Ela era mais do que uma ferramenta, era um legado, passada de geração em geração, até que eu a perdi. Até que eu perdi tudo que tinha.

Confesso que eu tinha dúvidas quando conde Miguel chegou e prometeu limpar a cidade do Sindicato. Agora, vendo Longinus de perto mais uma vez, eu não tinha dúvidas. A cidade tinha salvação. Tanto quanto a minha honra.

Sem cerimônias, sai de trás do caixote e investi em direção aos desgraçados. Meu ímpeto clamava por Yojimbo, mas eu não podia me permitir ser cercado pelos seus homens. Eu não podia ter nenhuma chance de falha. Em vez de um ataque direto contra o bestial, peguei impulso com a minha lâmina e saltei para o outro lado do grupo enquanto alguns perdiam tempo tentando me encurralar entre os caixotes.

Com uma mão, perfurei o pescoço de um dos guarda-costas e, com a outra, tomei o seu escudo. Enquanto os outros cinco começavam a compreender a minha manobra, arremessei o escudo contra o rosto de um deles, derrubando-o no chão. Sem conferir se os dois capangas estavam vivos ainda, ergui minha lança e apontei para os demais, sem permitir que nenhum avançasse sem ter o estômago aberto. Quando eles começaram a me cercar, eu estoquei contra o tórax de um deles, esticando ao máximo o braço e permitindo que a haste deslizasse até só segurá-la pela sua ponta, gerando um alcance de mais de dois metros. Sem esperar que eu conseguisse atacar daquela distância, o terceiro corpo desabou ao mesmo tempo em que eu voltei para a minha pose de combate.

Imediatamente um dos capangas avançou, mas os outros dois hesitaram. Ajoelhei-me e deixei sua lâmina cortar o vazio. Girei e tirei seus pés do chão com a haste. Fiquei de pé novamente e afundei a lança o rosto do infeliz.

- Fogo! - Alguém gritou, interrompendo a minha luta.

Ninguém seria burro o suficiente para olhar para trás, se não fosse o cheiro de fumaça se espalhando com tanta velocidade. A luz do fogo era forte e em breve seria impossível respirar dentro daquele armazém.

- Dane-se, não fui pago pra morrer - um dos capangas restante largou a espada e fugiu, sendo seguido pelo último.

Só sobrou eu e o Yojimbo.

- Você... - Ele me olhava faminto.

- Vim buscar a Longinus.

- Com que direito você quer essa arma de volta? Eu ganhei numa aposta limpa, lembra?

- Nada que você faz é limpo, seu desgraçado.

- Você podia ter sido rico ao meu lado. Agora, só sua vida vai pagar o prejuízo que me causou.

- Não me leve a mal, mas eu não estou a fim de morrer sufocado. Você sabe, seu armazém está incendiando - dei de ombros. - Vamos ser sucintos. Você morre e eu pego a Longinus e dou o fora daqui.

- A sua cabeça vai decorar o meu escritório, seu rato!

Yojimbo estocou uma, duas, três vezes, enquanto eu me esquivei e recuei. Não podendo ficar encurralado, aparei o quarto ataque com a minha haste e girei o meu corpo, usando a minha lança como um bastão contra o tornozelo do meu inimigo. Com uma agilidade extraordinária, ele saltou, fazendo a arma apenas raspar pelo chão, e prontamente girou a haste da Longinus contra o meu rosto.

Joguei o meu corpo para trás, apoiei minhas mãos no chão e vi o mundo virar um borrão enquanto me afastava numa cambalhota. Mal voltei para a pose de combate e Yojimbo já estava estocando de novo. Esquivei para a direita e contragolpeei, mas ele conseguiu aparar o meu ataque com a haste da Longinus. No mesmo movimento, o bestial me repeliu e girou a glaive de cima para baixo. Segurei minha lança com as duas mãos e bloqueei - um erro. Uma lança qualquer nunca teria qualquer chance contra Longinus, que partiu a arma em duas partes e me forçou a pular para trás para não ser partido ao meio.

Yojimbo sorriu ao me ver com os dois pedaços da arma despedaçada nas mãos. Eu sabia que jamais venceria sem Longinus. Afinal, eu não vim matar o meu inimigo. Isso nunca foi prioridade. Eu vim buscar a minha arma. Era hora de parar de errar.

Catei o escudo de um falecido e entrei em guarda. Com uma velocidade admirável, Yojimbo atacou na horizontal e foi bloqueado, girou e mirou a haste contra o meu outro flanco e encontrou minha proteção mais uma vez, ergueu Longinus e desceu sua lâmina contra minha cabeça e eu aproveitei a guarda aberta.

Com a mão esquerda, posicionei o escudo no alto e salvei a minha vida, com a mão direita, agarrei a haste, girei meu corpo e acertei o ombro do Yojimbo com toda a minha força.

O bestial rolou no chão.

Longinus estava em minhas mãos, finalmente.

Yojimbo se ergueu rugindo. Compreendendo que ele não aceitaria a derrota ao ficar desarmado, respirei fundo e preparei meu fôlego. Contudo, ele errou ao se entregar ao instinto e ao saltar em minha direção com as duas garras erguidas. Foi fácil estocar contra o seu abdômen. Ao se deparar com a morte, o bestial viu o erro e girou o corpo no ar, fazendo com que apenas o seu flanco fosse perfurado.

Devo respeitar o meu inimigo, qualquer outro guerreiro teria se entregado à dor, mas em vez disso, ele rolou e voltou a ficar de pé num único movimento. Ao ver que todo o teto do armazém estava coberto de fumaça, Yojimbo fugiu pela própria vida.

- Giovan? Miguel? Cadê vocês? - Gritei pelos meus aliados.

- Aqui! Rápido - o conde respondeu.

Tapei o rosto com a mão e corri o mais rápido que pude. Não dava para respirar com tanta fumaça ao redor. Perdi tempo entre becos sem saída de caixotes e pensei que desmaiaria ali mesmo, até que pude ver um brilho entre a fumaça e um vulto gritando por mim. Avancei com o que restava das minhas forças e teria desabado do lado de fora do armazém, se Miguel não tivesse agarrado o meu braço e me ajudado a correr para longe.

Tossi com força enquanto saboreava o ar fresco e senti meus olhos lacrimejarem com intensidade. Assim que consegui raciocinar com clareza, o desespero bateu.

- Cadê Giovan?

Ao perceber que o meu amigo não estava ali, nem esperei a resposta do nobre e corri de volta para o armazém. Era impossível. Uma cortina de fumaça espessa vazava pela porta e um calor cruel tomava conta da taberna. Quando eu comecei a odiar Miguel por ter nos contratado, ouvi atrás de mim:

- Aqui, idiota.

Lá estava ele. O palhaço do Giovan são e salvo.

- Seu filho de uma…

- Esfria a cabeça e vamos dar o fora daqui. Vai que o resto da gangue decide vir em retaliação.

Sem pensar duas vezes, nós três nos afastamos do estabelecimento o mais rápido que podíamos.

- Onde você pensa que estava? - Questionei enquanto corríamos.

- Eu não penso, eu sei muito bem onde estava. Quando o nosso querido conde teve a belíssima ideia de incendiar o armazém, eu vi que tava todo mundo fugindo e decidi garantir a vida de uma… Digamos “amiga”.

- Você abandonou a gente por uma meretriz do Yojimbo???

- Em primeiro lugar, não abandonei ninguém, nem tinha mais capanga nenhum quando o incêndio pegou de vez. E, em segundo lugar, não é meretriz, é massagista.

- Só não estou com mais raiva de você do que estou desse tal conde que botou fogo no armazém.

- Não precisa falar como se eu não estivesse aqui - o bigodudo interveio.

Paramos para descansar depois de algumas ruas. Ninguém nos perseguiria até ali.

- Inclusive - Miguel continuou. - Eu não teria tido a belíssima ideia de incendiar o armazém se não estivesse cercado por mais de dez homens.

- Quer saber? Pouco me importa. Eu tenho a Longinus, estamos todos vivos e ninguém vai sentir falta daquela taberna. Quer dizer, o Yojimbo e os clientes dele vão sentir, mas vocês entenderam. Vamos, agora podemos resgatar a sua filha.

- Opa, não tão rápido - Giovan interrompeu.

Era verdade. Faltava uma parte do acordo.

- Agora é a minha vez de buscar o meu pagamento.


***

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E, se quiser, confira a quarta parte: Imperdoável!

sexta-feira, 18 de março de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Crimes Heroicos

Ei! Esta é a segunda parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a primeira parte, clique aqui.

***

Giovan

- Explica direito esse papo de resgatar a sua filha.

Eu estava realmente curioso. As coisas iam de mal a pior naquele condado, mas raptar a filha do regente era inédito.

- Eu pensei que podia consertar essa cidade… - Miguel se lamentou. - Reforcei a guarda, exigi treinamento, persegui criminosos...

- Sim, sim, a minha última visita à masmorra deixou isso bem claro - cortei o papo furado. - Mas raptar a sua filha já é algo extremo até pro Sindicato Informal. O que tu aprontou pra fazerem isso?

- Eu aprontei? Essa cidade está entregue aos ratos e eu é que aprontei?

- O mundo inteiro está entregue aos ratos. E aos coiotes e abutres também.

- Eu só quis limpar isso daqui.

- Sinceramente, achar que reforçar a guarda daria certo foi ingenuidade. A milícia já está inserida no esquema do Sindicato há muito tempo - Rogerus comentou.

- Eu pensei que conseguiria identificar e eliminar os corruptos antes que eles conseguissem revidar - Miguel esclareceu.

- Então você é o único homem nesse condado que não sabe quem é o verdadeiro cabeça da sua própria milícia. Todo mundo sabe que só sobrevive entre os milicianos quem servir aos interesses do Darethar Gulgrin. O que aquele anão tem de gordo, tem de corrupto.

- Ele é um dos capitães! Eu estava confiando todos os planos de segurança a ele!

- Que merda, heim.

- Eu vou executar o maldito em praça pública - Miguel socou uma parede.

- Aham, isso vai ser antes ou depois de você pagar a gente pelo resgate da sua filha?

- Já aceitou a missão, é? - Rogerus permanecia cético.

- Parece lucrativo - respondi.

- Não sei. É bom demais o homem que nos botou na masmorra nos oferecer uma missão.

- Mais um motivo pra ser lucrativo.

- Eu mandei prender vocês por caçarem fora de estação - Miguel contestou.

- Aquela mantícora já havia atacado duas caravanas naquela semana. A gente fez um bem ao seu condado - defendi-me.

- E vender o couro e o veneno fez bem a quem?

- Olha, o couro deve ter sido usado pro casaco de alguma dondoca. Já o veneno, é difícil imaginar se fez bem a alguém…

- Bom saber que você continua dormindo em paz à noite sabendo que ajudou assassinos.

- Todo mundo tem as mãos sujas de sangue nessa cidade. Ou vai dizer que a sua espada é só enfeite.

- A diferença é que eu só caço por sobrevivência.

- Nós também, bigodudo! Acha que a gente ia se meter no mato pra caçar mantícora por esporte? A cidade só voltou a ter dinheiro pra apostar na arena agora, até o mês passado tava todo mundo falido.

- Então por que não caçaram um animal qualquer? Tinha que ser o animal mais valioso dos bosques?

- Por que a gente não queria roubar o emprego dos outros caçadores. Mantícora ninguém caça. Era matar o monstro ou morrer de fome.

- Ninguém vai precisar caçar fora de estação depois que eu limpar a cidade.

- Olha, eu não abaixei o meu arco pra ouvir os seus sonhos de grandeza.

- Certo… Eu recebi uma carta - Miguel finalmente começou a falar o que interessava. - Os capangas do Gorn, aquele meio-orc, fizeram um ataque em massa enquanto Lys estava voltando da missa e me avisaram que, se não renunciar até o amanhecer, eu nunca mais vou vê-la.

- Isso é estranho, Gorn é só um bandoleiro bruto - Rogerus se pronunciou. - Ele só atormenta as partes mais pobres do condado, não tem nem capacidade de roubar quem tem dinheiro de verdade.

- Ele liderou homens o suficiente pra aniquilar os guarda-costas da minha filha.

- Lógico, ele é um dos bandoleiros com mais capangas - expliquei. - A tua vida de nobreza nunca deve ter te ensinado isso, mas quando você nasce e cresce na miséria, é fácil achar que um boçal como o Gorn é um bom empregador. A garotada se acha o máximo por ganhar uma espada curta de presente e começar a extorquir os vizinhos.

- Isso nos dá uma boa e uma má notícia - Rogerus tomou a palavra. - A boa é que, se Gorn está com a sua filha, não vai ser difícil achá-la. Todo mundo sabe onde fica o covil do cara. A ruim é que tem muita gente que acha que o imbecil é o protetor e que a milícia é a opressão.

- Só precisamos tirar a minha filha das mãos dele - Miguel estava confiante. - Amanhã eu mando uma unidade inteira da milícia dar cabo da gangue toda.

- E depois? Como fica aquele papo de nunca mais ir pra masmorra? - Questionei.

- Vocês dois conhecem a minha cidade melhor do que eu. Posso oferecer cargos de capitães.

- Ou uma sacola gorda de dinheiro e a gente mete o pé da cidade, que tal?

- Quando a minha filha estiver segura, a gente decide o que é melhor pra vocês.

- E o que me garante que você não vai nos jogar na masmorra amanhã?

- Se eu quisesse vocês na masmorra, teria mandado meus guardas caçá-los de novo.

- Falando nisso, não mandou por quê?

- Pensei que você não gostasse de perder tempo com conversa fiada.

- Tudo bem. Vou deixar essa passar porque gostei da sua resposta. E eu detesto puxar uma flecha e não atirar, preciso meter essa belezura na testa de alguém.

***

A caminhada foi longa, pois não podíamos ir direto sem chamar a atenção dos capangas do Gorn. O plano era invadir a espelunca que ele chamava de quartel pelos fundos e achar Lys sem sermos notados.

- Esse distrito parece um chiqueiro - Miguel resmungou.

- Chiqueiro é uma tradição da nobreza. Todo feudo tem um chiqueiro. Consequentemente, toda cidade precisa de um também - ironizei.

- Chiqueiros são feitos pros porcos, não pras pessoas - ele rebateu.

- Explica isso pro seu tio. Nunca nenhum guarda de milícia ou qualquer tipo de agente dele botou o pé aqui. Deve ser por causa do cheiro do lixo que os nobres despejam em cima do povo.

- Você fala como se fosse culpa minha.

- E não é?

- Eu já disse que quero limpar a cidade.

- É o que todo nobre diz.

- Se eu fosse como todo nobre, não teria contratado dois criminosos pra salvar a minha filha.

- Você ainda vai me explicar por que escolheu justamente dois criminosos.

- Tenho meus motivos. Um deles é que eu já não sabia em quem confiar dentro dos meus próprios homens.

- Nisso, eu acredito.

- Vocês dois podem calar a boca por um instante? - Rogerus sussurrou. - Estamos quase chegando.

***

- Dois capangas na porta - Miguel falou como se eu e o meu amigo fôssemos cegos. - Como vamos fazer pra entrar sem que eles chamem os outros?

Eles estavam a cerca de cinquenta metros e nós estávamos escondidos entre os casebres.

Moleza.

Prendi a respiração, mirei por um instante e disparei uma flecha no meio do rosto de um dos capangas. Sem dar tempo para o outro entender o que estava acontecendo, disparei mais duas flechas, uma no seu abdômen e outra no seu ombro. Só dá para ter precisão na primeira flecha, então eu gosto de garantir o serviço disparando uma extra no segundo alvo.

Miguel contraiu o rosto com a solução que eu arranjei para o nosso problema, mas não reclamou. Sem mais obstáculos, fomos até a porta, catamos a chave com um dos corpos e invadimos o covil.

O local mais parecia um lixão. Era tão bagunçado que ficava difícil imaginar para o que era utilizado. Depósito? Dispensa? Calabouço? Sala de reuniões? Por mais que fosse improvável encontrar pessoas ali, não era impossível imaginar reféns presos num canto no meio dos entulhos.

Acendi uma tocha para enxergar melhor e vi um vulto passando perto de um armário vazio. Não estávamos sozinhos. Larguei a tocha no chão e puxei o arco e uma flecha.

- Quem está aí?

Rogerus sacou sua lança e Miguel desembainhou sua espada de duas mãos.

- Eu é que deveria fazer essa pergunta - reconheci a voz rasgada de Gorn.

- É ele? - Miguel sussurrou.

- Sim - respondi.

- Você sabe quem somos e quem viemos buscar! - O conde esbravejou.

E Gorn riu.

- Vocês caíram na minha emboscada, isso sim. A princesinha está longe daqui - seguindo a voz, sabia em qual direção o meio-orc estava, por mais que não pudesse vê-lo ainda.

- Nesse caso, é melhor você dizer aonde ela está e sair do nosso caminho - o bigodudo rosnou.

Rogerus acendeu uma tocha a mais e rolou a nova iluminação pelo solo, aumentando um pouco o nosso campo de visão.

- Tenho uma ideia melhor: vocês morrem e fim de papo. Atacar!

Azagaias foram arremessadas das sombras, fazendo eu e Rogerus nos agacharmos, enquanto Miguel bloqueou o corpo com a lâmina e deixou que uma azagaia raspasse em sua armadura, sem provocar nenhum ferimento. Se fossem armas mais bem elaboradas ou se os atacantes não fossem tão ruins, estaríamos mortos.

Logo em seguida, capangas vieram para o corpo a corpo. Alguns humanos, alguns meio-orcs, todos com armaduras de couro fajutas e armas improvisadas, como tacapes, lanças, machados de pedra lascada ou uma espada curta no máximo. Eram barulhentos e eu aproveitei o despreparo geral para atirar assim que eles entrassem na penumbra.

O primeiro caiu com uma flecha na testa sem nem chegar perto da luz, o segundo foi perfurado no tórax quando tentou se aproximar pelo meu flanco e o terceiro foi pego de raspão sem ficar intimidado.

Recuei um passo e afastei o rosto para escapar do golpe de tacape, aproveitei que não tinha nenhuma flecha na mão direita e saquei minha espada curta. Sem tempo para um duelo, descrevi um arco horizontal, abri o estômago do meu inimigo e aparei o ataque de um novo capanga que investiu com uma lança curta. No mesmo movimento em que afastei a sua arma, perfurei sua garganta e deixei-o agonizar enquanto arremessei a minha espada no tórax de um adversário que não conseguiu nem chegar perto de mim.

Agora com espaço para respirar, saquei outra flecha, esperei por meros segundos e encontrei o meu novo alvo. Derrubei o primeiro com uma flecha no peito, derrubei o segundo com uma flecha no pescoço e mal arranhei o peitoral de aço do terceiro. Era Gorn brandindo o seu machado de duas mãos.

- Hul! Hul! Hul!

Em vez de surgir em carga, o meio-orc veio marchando e urrando ritmicamente, demonstrando ferocidade e disciplina. Pele esverdeada, quase dois metros de altura, armadura quase tão completa quanto a do Miguel, olhos lupinos por trás do elmo, machado grande em punhos. Confesso que, ao mesmo tempo em que compreendi como um brutamontes daquele havia se tornado líder de uma gangue, senti minhas pernas dando um passo instintivo para trás.

- Hul! Hul! Hul!

Disparei uma flecha, me dei conta de que estava tremendo e mal arranhei sua ombreira.

- Hul! Hul! Hul!

Eu precisava fazer o desgraçado calar a boca!

- Hul! Hul! Hul!

Saquei uma nova flecha e ele atacou antes que eu pudesse mirar.

- Hul!

O machado foi erguido e desceu na direção da minha cabeça, obrigando-me a saltar em cambalhota pela lateral para não ser morto.

- Hul!

O machado girou rente ao chão, procurando as minhas pernas, errando por centímetros enquanto eu girava para longe.

- Hul!

O machado tentou me partir pela metade uma última vez, criando uma fenda no solo.

Em vez de insistir, Gorn deu meia-volta e se preparou para se proteger de Rogerus e Miguel. Sem se aproximar, meu amigo estocou, sendo repelido pelo machado. O conde tentou aproveitar, mas o meio-orc demonstrou agilidade ao se esquivar da espada de duas mãos e contra-atacar girando seu machado na horizontal na altura do peito do bigodudo, abrindo um corte no aço.

Aproveitando o impulso do primeiro ataque, o nosso inimigo deu um passo adiante e afastou Miguel com um golpe vertical de cima para baixo. Não sei se a intenção era matar o nobre ou apenas tirá-lo de perto, porque o ataque seguinte pareceu muito bem calculado contra Rogerus. Gorn quase partiu o meu amigo em dois, que se abaixou no último segundo e acertou sua lança no tornozelo do meio-orc, tentando derrubá-lo. Apenas tentando, porque o infeliz pareceu nem sentir o impacto. Miguel retornou ao corpo a corpo e espada e machado colidiram cinco vezes seguidas entre ataques e bloqueios de ambos os lados.

Eu podia acertar uma flecha na nuca do babaca, mas a gente precisava dele vivo para saber onde estava Lys. Um disparo no braço ou na perna também ajudariam, se não fosse arriscado demais acertar um dos meus aliados sem querer.

Rogerus estocou apenas para fintar e rodopiou a haste de sua lança contra o elmo do meio-orc, fazendo o metal reverberar, mas nada que incomodasse o brutamonte, que se dedicava a atacar Miguel.

- Hul!

O machado enganchou na ombreira do bigodudo e foi puxado com violência, arrancando fora a proteção. Teria desmembrado, se não fosse a espessura do aço.

- Hul!

O machado acertou com brutalidade a espada de Miguel, que ergueu sua arma na altura do tórax para não ser aberto ao meio.

- Hul!

O machado não decepou por pouco a canela do nobre numa tentativa estratégica de concentrar as defesas num ponto e atacar em outro.

A espada descreveu um arco horizontal e cortou apenas o ar.

A lança estocou e só raspou na armadura do meio-orc.

A flecha assobiou e atravessou o tornozelo do desgraçado. Dessa vez, o urro foi de dor.

Miguel aproveitou para acertar o cabo do machado de Gorn, estourando a madeira e desarmando nosso inimigo. Rogerus esticou sua lança e parou o ataque tão perto do olho do infeliz, que ele caiu para trás no susto.

- Agora você vai falar - o conde continuava ameaçador, mesmo ofegante.

- Os nobres só vêm atrás dos miseráveis pra trazer morte mesmo.

- Você foi atrás da minha filha primeiro!

- E provoquei menos mortes do que vocês três.

A espada de duas mãos se aproximou do pescoço do meio-orc.

- Aonde ela está?

- Eu não tenho medo da morte.

- Eu não quero te matar.

- Estranho você falar isso depois de tanto sangue.

- Fale aonde está minha filha e você vive.

Os dois se encararam por um longo momento. Nunca haveria confiança ali. Talvez trégua.

Talvez.

- De uma forma ou de outra, eu morro mesmo. Eu entreguei a princesinha pro McKinley.

- Você entregou a minha filha pro líder do Sindicato Informal??? - A lâmina encostou na garganta.

- Fodeu - soltei sem querer.

- Eu sabia que morreria… - O olhar lupino continuava firme.

Miguel ficou estático, em choque. O braço enrijecido, pronto para tirar a vida do homem que havia condenado a filha dele.

Então, o nobre deu as costas e saiu pela porta por onde entramos.

***

- Eu sei onde fica a torre do Denali McKinley, precisamos bolar um plano pra tirar minha filha de lá.

- Espera aí, o combinado era resgatar a Lys do Gorn, invadir a torre do McKinley é uma história muito mais complicada - protestei.

- Você está de palhaçada, né?

- Invadir a torre é suicídio - Rogerus foi sucinto. - Ser um fora da lei é melhor do que ser morto.

- Vocês não podem me abandonar agora!

- E você não pode levar a gente pra morte certa - cruzei os braços.

- Eu deveria ter mandado executar os dois!

- E você deveria renunciar. Ou a sua guerra contra o Sindicato é mais importante do que a sua filha?

- Quer saber do que que eu vou renunciar? Da bosta da minha vida! Se for pra morrer, vou morrer lutando e não lembrado como mais um covarde que se curvou pro Sindicato! Fodam-se vocês dois! Eu vou sozinho!

E deu meia volta e marchou.

- Espera - eu iria me odiar pelo o que estava prestes a oferecer.

Miguel me olhou como se eu fosse um dos raptores da sua filha.

- Vamos fazer o seguinte. Você adianta o pagamento e a gente vai com você.

- Vão pro Abismo!

- É a sua única chance de salvar a sua filha, idiota!

- Eu não tenho dinheiro comigo! E muito menos um pergaminho e uma pena pra fazer qualquer decreto!

- Já temos dinheiro e já fugimos dos seus decretos antes. Não é isso que a gente quer. Bom, pelo menos não é isso que eu quero. Rogerus?

- Falta muito pro amanhecer e a sua filha vale mais se estiver viva e intacta - o meu amigo finalmente abriu a boca. - Se ela estivesse nas mãos do Gorn, eu estaria preocupado do imbecil machucá-la. Nas mãos do McKinley, ela não deve estar nem algemada. Deve estar sendo tratada como uma prisioneira de luxo. Eu tenho algo a pedir. Se você me ajudar, eu vou até o final com você.

- E depois vai ser a minha vez - levantei a mão.

Miguel se acalmou um pouco para nos ouvir. Só um pouco mesmo.

- E o que você quer?

- Quero que você me ajude num resgate.


***

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E, se quiser, confira a terceira parte: O Olho do Tigre

quarta-feira, 9 de março de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: O Nobre, O Exilado e O Trambiqueiro

Miguel

- Se não for apostar, mete o pé.

Nunca imaginei que uma arena clandestina pudesse juntar tanta gente.

- Uma moeda de ouro pra dupla.

Se cada um tivesse apostado uma moeda de cobre, o lucro da casa já seria absurdo - e eu pude ver que moedas de prata não eram incomuns por ali.

A luta parecia boa. Os dois vândalos contra um monstro. O trambiqueiro e o exilado contra o ogro. Ou seria um orc? Era dois palmos mais alto do que os adversários, ou era um orc dos grandes ou um ogro que foi expulso do bando por ser pequeno demais. Não importa.
 
Eu vim atrás da dupla.

- Preparados? Que vença o melhor!

O grandalhão ergueu a clava e girou num arco horizontal, obrigando os dois oponentes a recuarem. Eles aproveitaram e cercaram o monstro. Entre rugidos e pancadas no chão, o bicho parecia pronto para nocautear no primeiro impacto - talvez até causar um traumatismo.

Giovan, o trambiqueiro, avançou três passos e recuou dois, esquivando de um golpe que poderia matar um cavalo de primeira. Foi tempo o suficiente para Rogerus, o exilado, estocar com sua lança e perfurar a costela do ogro. O ataque só não atravessou o adversário graças ao seu couro rígido.

Na maioria das arenas, o primeiro sangue é o fim do combate. Aqui, era apenas o começo.

A plateia gritou entre vivas e xingamentos. O mediador aproveitou e angariou mais apostas. O chão tremeu com a empolgação daquela escória.

A clava girou, obrigando Rogerus a saltar para trás. Em frenesi, o ogro desferiu outro golpe e mais outro, levantando poeira e fazendo a plateia ao redor se afastar de medo. Rogerus deu outro passo de ajuste e então uma cambalhota, voltando à pose de combate com uma agilidade respeitável. A haste da sua lança parecia ser de madeira de boa qualidade, mas não teria nenhuma chance num bloqueio contra uma arma tão bruta como aquela clava.

Giovan finalmente avançou contra o monstro e, em vez de usar sua espada curta - que realmente parecia inútil naquele combate -, acertou um chute corajoso por detrás do joelho do adversário, fazendo-o tropeçar. Rogerus ensaiou uma investida, mas foi repelido pela arma do ogro. Mesmo de joelhos, o bicho erguia sua clava ferozmente.

Giovan aproveitou e pulou no pescoço do oponente, se não conseguisse estrangulá-lo, ao menos iria distraí-lo. O grandalhão se levantou e se agitou, tentando agarrar o trambiqueiro com uma das mãos. Rogerus não pensou duas vezes e estocou contra o tórax da criatura. O que deveria ser uma fatalidade causou um pouco mais do que um filete de sangue, contudo irritou a besta. O ogro fechou a manzorra, arrancou Giovan de suas costas e arremessou o infeliz contra o seu amigo. Aparentemente, nenhum deles esperava um golpe tão truculento e ambos capotaram na areia, indefesos. Nós, humanos, nos acostumamos a lutar contra espadas e machados e ficamos sem saber o que fazer contra criaturas mais selvagens do que as tribos mais ferozes.

O ogro ergueu a clava e desceu numa pancada assombrosa. Pude ver Rogerus empurrando Giovan e pegando impulso para rolar, mas uma névoa de poeira se ergueu na colisão e o estouro contra o chão foi tão intenso que foi impossível distinguir o que exatamente havia sido esmigalhado.

Entre as tosses da plateia, alguém gritou:

- Atrás de você!

E uma silhueta encravou uma espada curta no crânio do ogro. Ao menos tentou. A clava descreveu um arco horizontal em resposta e Giovan esquivou para o mais longe que pôde. Enquanto a poeira baixava, pude ver um sangramento generoso escorrendo da cabeçorra do monstro, que continuava de pé contra todas as expectativas. O trambiqueiro jogou fora sua espada curta, retorcida e amassada, derrotada pelo crânio.

O ogro brandiu sua arma e exibiu as presas, determinado a finalizar seu oponente. Antes de dar seu primeiro passo, Rogerus surgiu da nuvem de poeira, saltando a uma altura inacreditável, superando a altura do monstro e armando sua lança numa ataque aéreo letal. O guerreiro desceu com todo seu peso enquanto o ogro tentou bloquear, mas não deu tempo.

A lança entrou no olho esquerdo da criatura, seu corpanzil despencou lentamente, levando-a ao chão num tombo colossal.

Os gritos foram ensurdecedores. Canecas colidiram em comemoração e até socos foram desferidos em indignação. Enquanto a plateia se dividia entre a fanfarra e o vandalismo, os dois amigos se abraçaram e saudaram seu público.

Exaustos.

Eufóricos.

Escória.
*** 

A dupla pagou uma rodada de cerveja para todos que apostaram neles. Se tanta gente não tivesse lucrado naquela luta, eles precisariam fugir dos perdedores em retaliação. Entretanto, eles eram os campeões da arena clandestina. Às vezes chamados de campeões da cidade. Dois trastes que haviam fugido das masmorras fazia uma semana.

Não muito tempo depois, eles foram embora. Era madrugada e apenas os piores elementos perambulavam pelas ruas. Qualquer um estaria em perigo naquele condado, exceto a dupla que havia acabado de derrotar um ogro.

Eles andaram pelas ruas desertas e viraram numa esquina. Quando eu virei atrás deles, já havia uma lança e uma flecha apontadas na minha direção.

- Por gentileza, o senhorio teria algum motivo pra que esta flecha não atravesse a sua testa agora mesmo? - Giovan ameaçou com cortesia irônica.

- Tenho um trabalho pra vocês - respondi.

- Já temos ouro o suficiente pra tirar férias, você vai ter que achar outros mercenários - Rogerus deu de ombros.

- Duvido que qualquer outro possa fazer esse trabalho e ninguém pode oferecer o que eu ofereço.

- Não vem com esse papinho mole não, amigo - Giovan começou a ficar impaciente. - Tá achando que essa armadura bonitona e essa espada de duas mãos vão servir de alguma coisa? Eu caço lebres toda semana, acertar um trambolho que nem você não teria nem graça. Vai alugar algum capanga qualquer lá na arena ou a gente vai ter que enterrar o seu corpo e vender seus equipamentos. Daria até pra comprar um feudo, estou começando a ficar tentado.

- Caça lebre toda semana, exceto quando visita as masmorras, né?

- Agora você vai precisar de dois motivos pra eu não largar essa flecha no meio desse bigode ridículo!

- Eu posso garantir que vocês nunca mais caiam nas masmorras.

Hesitação.

- Só um decreto do Conde Miguel poderia garantir isso - Rogerus me encarava com um misto de dúvida e desafio.

- Eu sou o Conde Miguel.

- Puta que pariu, agora eu quero três motivos! - A corda do arco se esticou ainda mais.

- E se essa flecha atravessar o meu bigode? O que vai ser da cidade? O Sindicato Informal vai mandar aqui de uma vez por todas?

- Escuta aqui, o Sindicato nunca esteve tão ativo desde que você chegou na cidade - Giovan acusou.

- Eu não estaria aqui, se eles não tivessem matado o meu tio!

- Você não pode provar que foi o Sindicato - Rogerus manteve o tom incerto.

- Ah, não vem com essa! Vocês sabem que o Sindicato controlava o meu tio como uma marionete. Eles sempre ameaçaram a cidade, só era mais fácil de fingir que nada acontecia enquanto o meu tio aceitava as extorsões. Vocês sabem que o Sindicato está cobrando cada vez mais caro pela proteção e sabem o que eles estão fazendo com quem não paga. Vão mesmo entregar a cidade de bandeja pra eles?
 
- Se você acha que a gente vai se unir à sua guerrilha, é melhor começar a correr, porque o meu dedo está cansando - mais um aviso do trambiqueiro.
 
- Não, não é nada disso.

- Então faz logo a sua proposta - o exilado decretou.

Respirei fundo.

- Minha filha foi raptada. Preciso da ajuda de vocês pra resgatá-la.


***

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 E, se quiser, confira a segunda parte: Crimes Heroicos!