quinta-feira, 30 de junho de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Três Homens em Conflito

Ei! Esta é a sétima - e última - parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a sexta parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.


***

Miguel

O extenso corredor levou a um luxuoso salão de banquetes. Uma grande lareira ao fundo era a principal fonte de iluminação e calor, sobreposta pelo brasão de McKinley - e do Sindicato Informal -, um olho com um sol no lugar da pupila. Pilastras e janelas ladeavam uma longa mesa de mármore, onde o cretino jantava.

Calvo, barba negra bem aparada, rugas por todo o rosto. Traje de gala branco, gravata borboleta azul, pulseiras e anéis nas mãos. Sorriso inconveniente. McKinley estava confortável em seu lar. A mesa tinha comida o suficiente para dezenas de pessoas e o rótulo da garrafa de hidromel tinha inscrições élficas que indicavam sua raridade - e preço certamente exorbitante.

Ao seu lado, um guarda-costas incomum. Lembrava a criatura que Rogerus e Giovan derrotaram no começo daquela noite, só que maior. Provavelmente eu, o mais alto do meu grupo, não alcançaria nem o seu abdômen. Pernas atarracadas, ombros e braços imensos. Pele espessa, músculos inchados, rosto vagamente humano, ainda que deformado: olhos e dentes pequenos, mandíbula e pescoço pronunciados. Pinturas de guerra ornamentavam seu rosto e seu tórax em branco, contrastando com sua postura ameaçadora. Seus únicos trajes eram botas, braçadeiras, cinturão e saiote de ótima qualidade, provavelmente presentes do McKinley. Apoiado no chão, um machado com o dobro do meu tamanho, cravejado de runas arcanas. Em seu rosto, um misto de ferocidade e ansiedade.

- Esse é Angorosh, da tribo Garras de Ferro, eles costumam assaltar as estradas - Rogerus sussurrou enquanto identificava o ogro.

Qualquer movimento brusco e com certeza aquele monstro defenderia seu mestre. Um dos dois, eu e meus amigos poderíamos dar conta. Ambos, duvido muito.

- Sentem-se - o líder do Sindicato Informal ofereceu.

- Não - fui sucinto.

- Meus criados tiveram tanto trabalho em preparar esta janta e vocês vão fazer desfeita?

- Falando em criados, isso daqui está meio vazio.

- Temos pessoas o suficiente na nossa reunião.

- Nós sobrevivemos a todo tipo de bandido essa noite. Você vai precisar de mais do que um leão de chacra - blefei.

- Não pretendo lutar com vocês.

- Covarde.

- Não sou covarde, apenas cauteloso. Diferente de você.

- Deixar que os outros façam o seu serviço sujo não é cautela, é covardia.

- Se todas as pessoas sujassem as mãos, o mundo não teria líderes. Imagine que caos.

- Caos é o que você fez com essa cidade.

- Ora, faça-me o favor. Eu estou reestabelecendo a ordem na cidade.

- Ah, mas não está mesmo.

- Já que vocês não vão se sentar, aqui está a minha proposta: eu noivo com sua filha e garanto que a cidade inteira fique sob o nosso comando.

- Só por cima do meu cadáver.

- Caso não tenha percebido, eu também estou pronto pra atender essa exigência. Estou sendo piedoso em oferecer outro caminho.

- Caso não tenha percebido, eu fui piedoso em não matar cada líder de gangue nesta madrugada. Não sei se serei tão generoso com você.

- Acha que eles serão gratos pela sua suposta piedade? Estarão todos sob o meu comando contra você no primeiro estalar de dedos.

- E serão aniquilados.

- Se quer blefar, pelo menos tente ser convincente. Você não teria a menor chance. Mas… Se eu e Lys nos unirmos, a cidade terá paz.

- Viver sob o medo não é paz. Eu vi o que o Sindicato fez com a cidade. Alucinógenos, extorsão, venenos. Que merda de paz é essa?

- Qual é o problema com os alucinógenos? O povo quer, o povo compra. Ninguém nunca obrigou uma pobre vítima a ingerir qualquer erva ou fungo nessa cidade. E ao que você se refere com extorsão? Os impostos não são um tipo de extorsão? Não vejo diferença nenhuma entre as suas práticas e as minhas, nesse caso. E sobre venenos… Bem, pensei que você gostasse de traficantes de venenos.

Não precisei olhar para Giovan para saber que seus olhos incendiaram.

- Nós vamos mudar essa cidade. Faremos dela um lugar melhor.

- Através de uma guerra civil? Não, Miguel, eu farei dessa cidade um lugar melhor.

- Melhor pra quem? Você e seu clubinho?

- Pra todos. A diferença entre eu e seu tio é que eu sou um trabalhador como todos os outros e ele era um parasita. Ele não fazia nada pela cidade, apenas vampirizava os cidadãos através dos impostos. Miguel, você vive num dos castelos mais requintados do reino, sabe disso. Eu, por outro lado, me esforcei pra dar ao povo o que ele merece: mais trabalho, mais dinheiro, mais conforto. Só assim pra qualquer um conseguir pagar o que seu tio cobrava e ainda sobrar dinheiro pro arroz e feijão. A burguesia prospera e a nobreza decai, é a ordem natural do mundo. Se quer sobreviver, vai precisar de mim. A cidade inteira precisa de mim.

- Quando você criticou os meus blefes, pensei que teria alguns melhores. O povo está mais miserável do que nunca, você só está trocando a nobreza pela burguesia.

- Não se elimina a miséria em um ano, é necessário décadas. A burguesia trabalha, enquanto a nobreza só goza dos privilégios. O seu sistema está falido.

- Ou você é tão cego quanto o meu tio foi, ou é o pior dos pilantras. Seu discurso é o completo oposto dos seus atos. A cidade nunca vai prosperar seguindo o seu rumo. Você abandonou a sua irmã só porque não gostou do seu cunhado, imagina o que vai fazer com o povo.

Foi a vez dos olhos de McKinley incendiarem.

- Minha irmã tomou suas próprias decisões. Eu apenas respeitei seu rumo.

- Você deu as costas a ela! - Giovan não conteve o grito.

- Ela podia voltar a hora que quisesse. Eu ofereci um bom partido a ela, um marido que iria protegê-la e honrá-la e ela não quis. Ela foi contra o que era melhor pra ela e pra cidade. E você? Foi caçar! Matar bichos no mato! Arrancar couro e extrair veneno!

- Pensei que você respeitasse o trabalho duro - Rogerus ironizou.

- Se minha irmã tivesse ficado comigo, ela estaria viva e a cidade estaria ainda mais forte com um casamento digno. Em vez disso, ela está morta.

- Você não é menos culpado do que eu - Giovan rosnou por entre os dentes.

- Eu busquei redenção, e você?

- Você é ridículo - eu cuspi as palavras.

- É sério, eu busquei redenção. Inclusive, desenvolvi o antídoto pro veneno de mantícora - McKinley puxou um frasco de um dos bolsos.

- Isso não muda nada. Você não fez nada pra salvar a sua irmã e nem pode trazê-la de volta.

- Mas posso salvar futuras vítimas. Ou até ajudar novos caçadores.

- O veneno mata em menos de uma hora, seu antídoto só serve pra quem for estúpido o suficiente pra caçar mantícoras - Giovan falou com hesitação. Não leio pensamentos, mas ficou claro de que estava desconfiado de algo.

- Ou quem for estúpido o suficiente pra invadir a torre de um mago.

Meu estômago revirou.

- Ou vocês acharam que eu daria qualquer chance de vocês tirarem Lys daqui? Supondo que Miguel fosse estúpido o suficiente pra cercar a torre com seu humilde exército, muitos morreriam, mas a vantagem numérica abriria caminho pra dentro do meu lar. Supondo que, por algum milagre, o humilde exército de Miguel, além de conseguir entrar pelos portões, conseguisse derrotar os meus homens. Por mais que as chances sejam pequenas, ainda há chances e eu não jogo com a sorte. Eu jogo com certezas. Caso seu humilde exército invadisse a torre e derrotasse meus homens, soldados não são páreos contra armadilhas. E eu tenho muitas. E esse é o meu trunfo. Qualquer um que tente chegar até Lys, vai ter que passar por tantas armadilhas, mas tantas… Que é impossível evitar todas. Podem tentar se quiserem, estarei esperando aqui em baixo. Dica: a última e mais bem escondida é a armadilha com veneno de mantícora.

Eu podia sentir cada músculo do meu corpo retesado.

- Já imaginava que essa seria a reação de vocês. Então, podemos negociar agora?

Giovan sacou o arco, puxou uma flecha e mirou na direção de McKinley enquanto o ogro prontamente colocou o braço na frente do seu mestre, tampando a nossa visão e protegendo o cretino.

- Entrega o antídoto agora - Giovan não estava mais raciocinando.

- Impressão minha ou está rolando algum tipo de emergência? - A voz do maldito era nítida curiosidade.

Giovan deu um passo para o lado e o ogro acompanhou o movimento, bloqueando o mestre com o próprio corpo. Uma flecha não o intimidava.

- Dá licença, Angorosh, não consigo ver meus convidados.

O ogro tirou o braço e uma flecha disparou bem na testa do mago, fazendo um brilho esverdeado ressoar. Não havia sequer um arranhão no meio das rugas e a flecha quicou no chão. McKinley encarava meu amigo tentando decifrar o que estava acontecendo, enquanto ignorava a flecha aos seus pés.

- Eu não acredito. Isso é desespero? Não me diga que tem mais alguém com vocês!

McKinley arregalou os olhos em sincera surpresa e levou a mão à boca contendo uma risada. Ele não iria gargalhar, é muito clichê para seus gostos. Em vez disso, segurou o sorriso enquanto digeria a informação. Quando teve certeza do que estava acontecendo, começou a bater palmas.

- Nossa, parabéns! Parabéns! Vocês são geniais! Eu não sei quem foi estúpido o suficiente pra embarcar nessa jornada suicida, mas vocês conseguiram! Tem mais alguém na torre, não é mesmo? A gente está aqui conversando, enquanto alguém tenta resgatar a Lys. Acertei?

- O antídoto. Agora - Giovan já tinha outra flecha pronta.

- Sinto lhe informar, mas seja lá quem for, vai morrer.

- Seu filho da puta! Ela não tem nada a ver com isso! Dá o antídoto!

- Ela? É sério que você enviou mais uma mulher pra ser morta pelo veneno de mantícora? Excelente! Estou até começando a acreditar em justiça divina! Pra sua informação, eu não obriguei ninguém a invadir a minha torre, essa pessoa aí entrou porque quis, logo, tem tudo a ver com isso. E eu não vou dar o antídoto sem antes termos um acordo e não costumo aceitar promessas. Avaliando as probabilidades menores, por mais que vocês consigam pegar o antídoto e correr escadas acima, é próximo do impossível que façam isso a tempo. Realmente, não há nada o que podemos fazer pra salvar a sua amiga.

Desembainhei a espada e Rogerus apontou a glaive para o ogro.

- Não deixe que esses dois cheguem perto de mim, eu cuido do arqueiro - McKinley limpou a boca com um lenço e se levantou.

- Com prazer - o monstro grunhiu.

Antes que pudéssemos avançar, Angorosh levantou a mesa com uma mão só, fazendo-a capotar em nossa direção, dividindo-nos, e investiu contra Rogerus. Seu machado conseguia ter um alcancei ainda maior do que a glaive, impedindo que meu amigo usasse sua tática de manter a distância.

Mas eu não tinha tempo para prestar atenção neles, precisava aproveitar a oportunidade para atacar McKinley. Eu só precisava acertar um único golpe. Só um.

Dei dois passos e o ogro chutou a mesa, empurrando-a contra o meu tornozelo e me derrubando no chão. Enquanto me levantava, a criatura deu um único passo e desceu seu machado como uma guilhotina contra a minha cabeça. Rolei para longe e ouvi o mármore estourando a centímetros de distância. Foi por pouco.

A sala piscou num relâmpago que disparou das mãos do McKinley e acertou uma janela, espalhando cacos por todos os lados. Giovan não desperdiçava flechas, pois sabia que magia era um recurso limitado e precisava forçar nosso inimigo a gastar toda a sua reserva. McKinley, por sua vez, não tinha pressa em nos matar, poupando seus feitiços para quando encontrava uma brecha nas defesas de Giovan.

O ogro deu mais um passo, eu e Rogerus estávamos divididos e nosso inimigo já estava pronto para proteger McKinley por qualquer ângulo. Levantei-me e me preparei para uma investida enquanto meu amigo pegou impulso, correu, usou sua arma como bastão e tentou saltar por cima do ogro.

Infelizmente, só tentou. Angorosh girou seu machado e acertou Rogerus ainda no ar. Não pude ver com detalhes, pode ter sido só um arranhão, pode ter partido o meu amigo ao meio. Se era para um de nós morrer, que os vivos honrassem seu sacrifício.

Corri em carga e joguei todo o meu peso numa estocada contra o estômago do ogro, acertando em cheio. Para a minha decepção, a lâmina não entrou nem um palmo no abdômen do desgraçado. Ele resmungou, olhou nos meus olhos, ergueu seu machado e eu pulei para esquerda, deixando que um buraco se abrisse no chão e não no meu peito. Ainda de joelhos, girei minha espada e abri um corte no tornozelo da criatura. Eu poderia ter partido um guerreiro ao meio, mas só consegui arrancar um filete de sangue do ogro. Seria necessário muitos cortes até derrubá-lo.

Angorosh girou o corpo e raspou sua lâmina pelo chão, tentando acertar minhas pernas. Saltei em outra cambalhota e estoquei contra sua virilha, sem sucesso, pois meu inimigo aproveitou o próprio impulso para recuar e voltar à guarda. Era a minha vez de me defender.

Enquanto me preparava para a esquiva, pude ver Rogerus raspando sua glaive na costela de McKinley.

- Ele sangra! - O lanceiro anunciou.

Três flechas dispararam na direção do mago, mas ele já havia conjurado um anel de fogo ao seu redor, engolindo Rogerus na linha de chamas. As flechas se desfizeram na barreira flamejante e o lanceiro ainda teve forças para saltar para dentro do anel, em vez de fugir para fora como qualquer pessoa sensata faria.

Angorosh simplesmente me deu as costas e saltou para dentro do anel de fogo, ignorando as queimaduras que brotaram pelos seus braços e pernas como se fossem um pequeno inconveniente. Tentei atacá-lo pelas costas, mas ele estava distante demais para um golpe simples, eu precisaria segui-lo pelas chamas.

Respirei fundo e me preparei para a investida, mas o corpo de Rogerus voou para fora do fogo, aparentemente inerte. De dentro, pude ver o ogro com os braços estendidos e o cabo da arma em riste, como quem desfere uma estocada. A prioridade era nos manter longe do seu mestre, afinal. Rogerus, por sua vez, tentava se levantar com muita dificuldade. Sua barriga e suas pernas eram sangue puro e ele ainda tentava dolorosamente recuperar o fôlego depois do último golpe. Reconheço um guerreiro à beira da morte quando vejo, se meu amigo tentasse lutar, seria um alvo fácil.

- Previsível - foi tudo que McKinley disse enquanto disparava um relâmpago no peito de Giovan, que havia escalado uma estante de livros. Meu amigo despencou como uma ave abatida e sua única reação foram os espasmos musculares causados pela eletricidade.

Enquanto isso, Angorosh saiu das chamas na minha direção, sem pressa para me matar. Não me acovardei. Nós dois erguemos nossas armas ao mesmo tempo, como guerreiros que reconhecem o valor um do outro.

E ouvimos o portão de entrada da torre estourando.

Os olhos do ogro encararam o corredor com irritação. Quem está vencendo nunca gosta de ser interrompido. Sua atenção se dividiu. Eu me agarrei à minha única esperança e aguardei que o ogro se distraísse por um único segundo para que eu pudesse atacar sem ser morto no caminho. E alguma coisa invadiu a sala de banquetes em fúria na direção de Angorosh.

Um palmo a mais do que eu de altura, um tapa-olho improvisado e uma clava do tamanho da minha espada. O ogro que Rogerus e Giovan haviam derrotado no início daquela noite estava atacando Angorosh.

- Você, forte! Eles, mais fortes! Você, sozinho, fraco! Eles e eu, mais fortes!

- Pequeno! Fraco! Traidor! - A atenção do monstro maior estava toda no novo oponente.

O machado descreveu um arco no ar, quase acertando o tórax do ogro menor, que aproveitou a brecha para acertar a clava contra a têmpora do Angorosh, aparentemente atordoando-o por um segundo.

Corri, me engajei no corpo a corpo e raspei minha espada nas costas do meu inimigo, que rosnou de dor. Sua arma girou mais uma vez e eu me abaixei e senti apenas o vento se deslocando. Levantei-me e aproveitei o impulso num golpe diagonal que abriu uma fenda na coxa do Angorosh, enquanto o ogro menor fez seu ombro estalar num impacto ruidoso.

Com um braço machucado, seus movimentos ficaram ainda mais lentos e previsíveis. Angorosh preparou um ataque, mas recebeu a clava no peito e a espada no estômago antes mesmo de erguer os braços.

Finalmente estávamos conseguindo arrancar sangue do ogro.

Uma costela estourou com um golpe de clava. Um corte generoso quase partiu um antebraço ao meio. Um tornozelo se deslocou no impacto da clava. Uma estocada perfurou uma coxa, fazendo Angorosh cair de joelhos. O ogro menor aproveitou e quebrou sua mandíbula num único ataque. Eu quase abri seu tórax com uma espadada.

E, finalmente, Rogerus retornou ao combate e encravou sua glaive no pescoço do Angorosh.

O ogro estava morto.

Não tivemos tempo nem de pegar fôlego quando o anel de fogo se dissipou e um cone flamejante lambeu nossos corpos. Tentei proteger meu rosto enquanto senti minha pele criar bolhas e pulei para o mais longe que pude. Ao perceber que estava fora do alcance da magia, olhei ao meu redor e vi Rogerus rolando no chão até apagar o fogo e então cedendo aos ferimentos mais uma vez, sem forças para se levantar.

O ogro menor rosnou para o McKinley e recebeu um relâmpago em resposta, arrancando um urro frenético. O ogro deu um passo e outro relâmpago cobriu o seu corpo, que não teve nem tempo de gritar, apenas amoleceu e tombou. Eu já havia visto magia antes, mas nunca tantas seguidas em tão pouco tempo.

Apontei minha espada para McKinley, preparei a investida, mas ele já estava com a mão apontada na minha direção.

- Você não tem forças pra mais magias - desafiei.

- Vem aqui e descobre.

- Eu só preciso de um golpe pra te partir ao meio.

- E eu só preciso de um relâmpago pra te mandar pro Abismo.

- E eu só preciso de uma flecha.

Ao mesmo tempo em que a voz do Giovan surgiu dos fundos do salão, uma seta se encravou nas costas do McKinley, provavelmente perfurando seu coração. O mago arregalou os olhos. Mais por surpresa do que dor. Sem risadas dessa vez. Seus joelhos amoleceram. Sua roupa branca rapidamente se tingiu de vermelho. E seu rosto finalmente foi de encontro ao chão.

E nós respiramos aliviados.

O corpo se acalmou, mas a mente continuava um turbilhão. Meus amigos estavam à beira da morte. Minha filha ainda estava presa na torre. Nimh já podia estar morta a essa altura. McKinley foi derrotado, mas isso não garantia a nossa vitória.

Giovan mancou às pressas para o corpo do nosso inimigo em busca do antídoto e eu olhei ao meu redor. Rogerus e o ogro menor respiravam. Apressei-me até o meu amigo para conferir seus ferimentos. O corte do machado era enorme, mas estava quase completamente cauterizado.

- O fogo fechou as feridas. Irônico, né? - Sua voz era um fiapo.

- Não fechou tudo, fica quieto que eu vou fazer um curativo.

- Eu me viro. Você precisa se apressar, a Nimh pode estar em apuros.

Olhei para Giovan. Ele chegou até McKinley, botou a mão em seu ombro, girou seu corpo de barriga para cima e a mão do desgraçado agarrou o abdômen do meu amigo.

- Escute com bastante atenção - o mago se agarrava à vida com a calma que só o desespero traz. - Se você fizer qualquer movimento brusco, eu literalmente desintegro seu corpo até só sobrar pó, isso não é uma ameaça, é um aviso, está entendendo? Agora… Eu exijo que…

Giovan sacou sua adaga e uma luz verde piscou da mão de McKinley.

- Não! - Eu gritei em reflexo e corri na direção dos dois.

Um buraco se abriu no abdômen do meu amigo e começou a aumentar lentamente. A adaga entrou no pescoço do McKinley, que não teve nem o prazer de ver sua magia terminar seu efeito. Enquanto seu sangue se espalhava pelo chão, o peito, o ombro e as pernas de Giovan se esfarelavam.

- Não! Não! Não!

- Miguel, você é muito cabeça oca mesmo.

Seu sorriso sarcástico surgiu enquanto seu pescoço abria como um papel virando cinzas.

- Eu comecei essa noite jurando a mim mesmo que não morreria hoje…

Toda a parte da frente do seu corpo já não existia, exceto pelo rosto. Aos poucos, ele se desmanchava na minha frente.

- Mas acabei descobrindo que eu minto muito bem até pra mim mesmo… Já faz um tempo que eu não me importo com a minha vida. Acho que deu pra perceber, né?

Já era possível ver através das suas costas. O queixo já começava a sumir. O sorriso continuava lá.

- Agora, para de perder tempo. Salva a Lys e a Nimh… E sabe de uma coisa?

Seus olhos se fecharam. Seu rosto se desfez. Tudo o que sobrou foi um último eco:

- Acho que você me salvou também. Obrigado por tudo.

Não tentei conter as lágrimas. Eu não tinha tempo para isso. Só tive tempo de pegar fôlego, agarrar o antídoto e correr para as escadas.

Subi até a biblioteca e pude ver alguns virotes espalhados pelo chão e um machado suspenso no teto pelo caminho. Provavelmente havia outros detalhes que eu ignorei. Só fiquei um pouco aliviado de não ver sangue pelo chão, confirmando que Nimh não havia se ferido logo no início.

Se antes a minha mente era um turbilhão, agora era apenas o resgate. Nimh podia estar em seus últimos segundos. Ou podia já estar morta. Pior, ela poderia ter alcançado Lys e as duas poderiam ter sucumbido juntas em alguma armadilha no caminho de volta. Tudo o que eu havia passado até ali parecia supérfluo. Nada era relevante. Tudo se resumia à vida de duas jovens que não tinham culpa de nada.

Corri por mais um lance de escadas, entrei no escritório e senti um estalo no meu pé, que abriu um alçapão e derrubou um óleo sobre minha cabeça. Recuei por reflexo e vi o chão criar bolhas e buracos com o ácido que poderia ter me matado. Sem tempo a perder, avancei e decidi que evitaria as armadilhas simplesmente não parando para ser atingido. Senti o segundo estalo e meu plano logo se mostrou falho, pois incontáveis espinhos brotaram do chão e conseguiram perfurar meu pé esquerdo. A dor só piorou quando eu me equilibrei e puxei a bota para fora da armadilha. Certamente havia um método melhor de tirar o pé de um espinho, mas eu não tinha tempo. Manquei até a escada para o próximo andar e pude ver de longe mais um gatilho no solo, evitando-o sem dificuldades.

Eu não sentia dor. Sentia cada ferida daquela noite. Desde o primeiro sangue derramado até a última armadilha que me feriu. Só não doía. Era uma sensação de vazio, de peças faltando, de peças perdidas. Ao mesmo tempo, juro que sentia cada ferida que provoquei. Cada corte. Cada perfuração. Cada vida que tirei. E nada doía. E nada me preenchia. Na verdade, era como se tanto sangue derramado fosse o combustível que me fazia subir cada degrau. Faltava pouco agora. Pouco para fazer valer cada gota de sangue. Ou para ser eternizado como o homem que provocou uma guerra civil e encontrou duas pessoas mortas como prêmio.

- Nimh!? Lys!? - Eu gritei assim que cheguei no quarto andar.

Manquei com toda velocidade possível pelo corredor circular e logo um virote raspou nas minhas costas, quase perfurando meus intestinos ou minha coluna.

Mais sangue.

Minha visão ficou suavemente turva e eu perdi as contas de quantas portas e janelas já havia passado. Meu pé perfurado começou a adormecer e, quando me dei conta, eu já estava me segurando pelas paredes.

Um estalo e um tijolo falso acertou meu tornozelo feito um aríete, esmigalhando alguns ossos.

Caí de joelhos.

Tentei me levantar.

Não consegui.

Comecei rastejar pelo corredor. Olhei ao redor e vi tudo embaçado. Pisquei com força, a visão se corrigiu por um instante e voltou aos borrões. E eu rastejei. Os braços estavam trêmulos, mas conseguindo se manter eretos. Apenas um joelho respondia, o outro sendo arrastado, inútil. E eu rastejei. Mais portas. Mais janelas. Mais mobília e mais quadros. Os ombros ardiam e minhas mãos sangravam de tanto esforço.

E eu rastejei.

Não sei o que vi primeiro: o corpo de Nimh caído em frente a uma porta entreaberta ou a guilhotina que desceu na direção do meu pescoço. Com minhas últimas energias, rolei pelo chão, mas não tive tempo de tirar o braço que usei de impulso. Meus reflexos já estavam prejudicados demais e, no último momento, eu senti os ossos do meu antebraço cederem por apenas um segundo, seguido pelo fervor do sangue escorrendo farto pelo tapete.

E eu rastejei.

A mão restante puxou meu corpo. O outro cotovelo serviu de apoio. Um joelho deu um pequeno impulso.

E eu desabei.

Não foi aos poucos. Foi de uma vez só. Eu já estava avançando sem ter nenhuma energia. Mas nem mesmo a força de vontade dura para sempre. Meu corpo cedeu. Nada respondia. Apenas meus olhos. Não estavam mais embaçados, provavelmente as lágrimas limparam minha retina.

Nimh estava a apenas um passo de distância. Eu desejei encontrá-la, ao menos, serena. Em vez disso, ela agonizava. Sua pela clara agora era cinzenta. O peito tentava respirar inutilmente. O olhar era distante, febril.

Minha única mão quase encostava na dela. O antídoto estendido à disposição de uma inocente que não podia agarrá-lo.

Meu último medo foi não morrer. A visão começou a escurecer e eu fiquei apavorado. Acordar depois de um fracasso tão horrendo seria ainda pior do que morrer olhando o antídoto nas minhas próprias mãos enquanto Nimh delirava.

Por fim, Rogerus pegou o antídoto, colocou a jovem em seu colo e despejou o conteúdo em seus lábios, sem surtir nenhum efeito.

Minha mente vagou para longe da torre.

Meus olhos se apagaram aos poucos.

Meu corpo se entregou ao vazio.

E o último som que pude ouvir foi a respiração engasgada de Nimh.



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2 comentários:

  1. Respostas
    1. Uau, alguém leu até aqui? Haha, brincadeira!

      Fico honrado e lisonjeado que tenha gostado! E espero que goste dos outros contos também!

      Um abraço!

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