sexta-feira, 18 de setembro de 2015

01: Irmãos (Parte 2)

- Nós ainda vamos acabar matando um ao outro – comentei baixo enquanto aguardávamos as últimas palavras de nosso mestre. Gladius achou graça.

- Draco e Gladius, como estou orgulhoso de vocês – nosso mestre começou. – Esperava muito de ambos quando chegaram ao meu templo. Em vários aspectos, me orgulharam. Em vários me surpreenderam. E, em alguns, também me desapontaram. E com o tempo, aprendemos que as singularidades incorrigíveis de nossos discípulos são o que os tornam tão especiais. Dizer que eu não tenho mais nada a lhes ensinar seria uma mentira, vocês ainda têm muito que aprender. Mas o treinamento dentro de um templo velho com um ancião é muito lento e entediante. Vocês precisam aprender sozinhos. Precisam cometer os próprios erros e conquistar as próprias vitórias. É para isso que existe a juventude: para vocês, jovens que se acham os donos do mundo, experimentarem o sabor amargo da decepção e a explosão eufórica da vitória. Agora vão, jovens guerreiros. Foi uma honra tê-los em meu templo.

E então um instante de silêncio constrangedor. Todos esperando uma reação e ninguém dando o primeiro passo. Eu hesitei.

- Mestre, tem certeza que não é cedo? – Questionei.

- Vamos lá, Draco, você já está grandinho demais pro mestre ficar te ninando todas as noites pra não ter pesadelos – Gladius não perdeu a oportunidade.

- Vocês dois vão aprender muito ainda. Podem aprender mais um com o outro do que comigo, acreditem. Conquistem algumas vitórias e voltem aqui para me contar. Quem sabe eu não ensino mais um golpe ou outro para vocês? – Ele concluiu a despedida, deu meia volta e entrou no templo.

O silêncio imperou por mais um instante.

E então nossos passos foram os únicos ruídos naquela despedida.

***

- Para onde pensa em ir agora? – Meu amigo começou.

- Não sei.

- Como assim não sabe? Você viveu no mesmo templo a vida inteira e não tem nenhuma ideia de pra onde ir?

- Não me sinto preparado.

- Por que não? Prefere ser a donzela em apuros do que o herói, é isso?

- Apenas não me sinto preparado.

...

- Só tem uma maneira de você saber se está preparado ou não.

- É? Qual?

- Enfrentando outros guerreiros!

- Outros guerreiros? Não quero simplesmente matar pessoas por aí?

- E quem disse que precisa matar pra enfrentar outros guerreiros?

Observei Gladius por um instante.

- O que está tramando?

- Não é óbvio, Draco? Vamos pras arenas!

***

Eu e Gladius nos juntamos a uma caravana e viajamos para a cidade natal de meu amigo, Allandria. Foi menos de uma semana de estrada, eu agradeci por não termos encontrado nenhum problema no meio do caminho, enquanto Gladius reclamava do tédio.

Logo que chagamos, eu não pude disfarçar a minha apreensão. Estivera poucas vezes em regiões urbanas ao longo de minha vida. Na maior parte do tempo, estudava, treinava e vivia no templo com o mestre. Raras vezes ele me levou até uma cidade e nunca ficamos mais de alguns dias longe de casa. Allandria era uma metrópole e eu nunca havia visto tanta gente junta num lugar só.

A República Branca possui uma política singular: cada cidade é um estado por si só, sendo regida em conjunto pelo Conselho e pelos cidadãos, sendo que uma delas é considerada a capital, regida pelo “primeiro cidadão”. Cada cidade-estado possui suas próprias leis, mas, de modo geral, os homens participam das decisões políticas e a escravidão é legalizada. Allandria é uma cidade portuária com forte comércio e onde as leis e a política são vistas como fundamentais para todos. A cidade que leva o nome da falecida Matriarca da Justiça se orgulha de ter as leis mais modernas e justas de todo o continente e de ter seus cidadãos altamente cultos e estudados – além de um comércio marítimo lucrativo.

- O bicho do mato está estranhando o mundo fora da toca? – O meu amigo debochou.

As casas eram de pedras brancas esculpidas em blocos nas paredes e em cilíndricos nas pilastras. Pessoas vestiam túnicas, falavam alto, andavam, compravam e vendiam, entre outras várias coisas que os meus olhos não conseguiam acompanhar. Segui Gladius, que andava de forma natural e satisfeita. Ele viveu no templo por sete anos, mas visitava sua terra natal com frequência e parecia estar saboreando sua nostalgia pelas ruas.

Com o tempo, fui percebendo diferenças nas vestimentas dos cidadãos: os homens de menor prestígio usavam túnicas simples, provavelmente pobres e escravos, alguns homens usavam túnicas bordadas com brasões de famílias, pareciam ser os homens livres, e alguns poucos usavam uma capa por cima das túnicas, pareciam ser os de maior prestígio. Os guardas da cidade não ficavam em posição marcial o tempo todo, às vezes caminhavam entre os outros cidadãos, às vezes ficavam a postos segurando lanças em alguma parte específica, mas todos mantinham o queixo bem empinado – ainda que aproveitassem da paz do caos urbano, mantinham o orgulho de suas funções firme em tempo integral. Eles vestiam uma couraça por baixo das togas e portavam uma lança, uma espada curta e um escudo de bronze.

- Gostei das armaduras da milícia. Eu me sentiria honrado fazendo parte dela.

Gladius me olhou com ar preocupado:

- Esqueça.

- Como assim?

- Simplesmente esqueça.

- Por quê?

- Você não é um cidadão.

- Então, eu só precisaria me tornar um.

- Não se torna um cidadão. Ou nasce cidadão ou é estrangeiro. Pra ser cidadão é preciso ser filho de pais cidadãos, ou seja, você não é um e nem seu filho seria. No máximo o seu neto poderia ser, mas eu acho perda de tempo pensar nisso.

- Por quê?

- Esqueceu como se faz uma afirmação e vai passar o resto da vida me perguntando tudo? Draco, olhe ao nosso redor. Eu amo tudo isso, é a cidade onde eu nasci e passei a minha infância, mas eu sou um guerreiro. Acha que eu quero ficar parado aqui pra sempre? Lógico que não! Eu quero viajar, pilhar um pouco de tesouro, fazer um pouco de fama. Quem sabe até explorar alguma masmorra? Acha que alguém consegue alguma coisa dessas vivendo aqui? Nosso destino é a estrada, meu amigo. Sempre foi e sempre será.

Não soube definir se o que Gladius dissera era verdade ou apenas mais uma de suas idiotices. Eu sempre ouvira o mestre e apenas o mestre, aceitando tudo o que me ele me dizia como verdade.

Agora, pela primeira vez, eu me questionava.

Qual seria o meu destino?

O que significaria ser um guerreiro?

Nenhum comentário:

Postar um comentário