quinta-feira, 24 de março de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: O Olho do Tigre

Ei! Esta é a terceira parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a segunda parte, clique aqui. Ou, se quiser ler a primeira, clique aqui.

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Rogerus

Nós não somos heróis. Somos mercenários, uma coisa muito diferente. Essa cidade sempre nos ofereceu serviço e poucas leis. Era divertido. Até o Sindicato Informal chegar. Com certeza uma organização criminosa como essa só nasce graças a um regente frouxo, e era o caso do tio do Miguel. Ele permitiu que o tráfico de alucinógenos e que a jogatina se tornassem a principal forma de entretenimento, até que o povo começou a perceber que podia fazer o que quiser, que a lei não seria aplicada. Os miseráveis se tornaram violentos e os prósperos se tornaram insaciáveis. Até que o Sindicato organizou o crime e tomou o controle da cidade.

Agora Miguel quer corrigir os erros do seu antecessor. Se o conde for tolo como o seu tio, não vai sobreviver até o próximo mês. Se for astuto, é do lado dele que eu vou querer estar quando a guerra contra o Sindicato começar.

- Chegamos - anunciei.

É lógico que eu precisava testar o nobre primeiro.

- Por que estamos numa taberna? - Miguel estava impaciente.

- Esses são os meus termos. Você me ajuda a resgatar a minha arma e eu te ajudo a resgatar a sua filha.

- Quem me garante que isso não é uma armadilha?

- A gente não precisa de uma armadilha - Giovan parecia entediado. - Se quisesse, você já teria sido entregue pro Denali McKinley. E vê se não esquece que eu tenho a minha exigência também.

- Não temos muito tempo, droga - o que o conde tinha de grande, tinha de resmungão.

- Temos a noite inteira pela frente. É só entrar, resgatar minha arma e sair. Daí a gente vê o que o Giovan vai querer e depois vamos encontrar a sua filha.

- Uma arma não pode ser tão importante, eu mando fazer uma ainda melhor pra você amanhã mesmo.

- Outra arma não seria a minha arma. Preciso dela.

- E por que eu nunca ouvi falar desse tal de Yojimbo que você quer tanto encontrar?

- Porque ele não é humano, por isso prefere atuar por detrás das cortinas.

O conde fez uma careta que deixou o seu rosto ainda mais feio.

- Vamos acabar logo com isso - ele se decidiu.

- Tudo bem, então. Estão vendo aquela porta ali? - Giovan apontou. - É o armazém, o único lugar que não deve estar lotado de capangas agora. Só tem quatro guardas na porta, vai ser moleza. Eu e o Rogerus damos conta deles e você fica de vigia e avisa se chegar reforços. Quando os quatro estiverem no chão, você vem e a gente entra.

- Posso ajudá-los no combate - Miguel ofereceu.

- Até você chegar com essa armadura, um dos guardas já chamou reforços e não vai dar pra nós três pegarmos a gangue do Yojimbo inteira de uma vez só.

- E esse tal de Yojimbo? Cadê ele?

- Com sorte, está contando dinheiro ou chapado de narguilê. Vamos.

Eu e o meu parceiro avançamos o mais silenciosamente possível até uma lateral da taberna onde não havia ninguém por perto. Faltando alguns metros até a construção, afundei a haste da minha lança no chão, peguei impulso e saltei para o teto. Sem perder tempo, estendi minha arma para Giovan e ajudei-o a escalar a parede.

No teto, demos a volta tomando cuidado para não tropeçar na cerâmica até a porta do armazém. Dois guardas logo na entrada e dois mais afastados. Eu e Giovan nem precisávamos trocar palavras.

Saltei e encravei a lança no trapézio de um dos guardas, sem afundar demais para a ponta não ficar presa. Enquanto o seu corpo desfalecia, aproveitei a surpresa do outro, girei minha lança e acertei a ponta da haste no topo da sua cabeça, causando um impacto ruidoso e derrubando mais um capanga.

Olhei ao meu redor e já havia uma flecha em cada um dos outros vigias, enquanto conde Miguel se aproximava ao longe. Giovan desceu do telhado, vasculhou os corpos procurando pela chave sem sucesso, então sacou um par de alfinetes e começou a cutucar a fechadura da porta.

- É melhor esconder os corpos - Miguel alertou.

- Pode começar a carregá-los, então - o nobre parecia não gostar de ser tratado como uma pessoa comum, mas dane-se, eu não era o seu cavaleiro juramentado.

Não sei se ele queria impressionar alguém, mas o nobre arrastou dois corpos ao mesmo tempo, um com cada mão, enquanto eu cuidei dos mais próximos um de cada vez. Assim que ouvimos o estalo da fechadura e o leve ranger da porta, puxamos os quatro para dentro do armazém.

Por dentro, havia poucas tochas, nenhuma acesa, e muitas janelas, permitindo uma penumbra suave. Vários barris e caixotes se espalhavam, deixando a tarefa de esconder os corpos fácil - pelo menos, levaria algum tempo até encontrá-los. O cheiro de especiarias era forte, só não sei dizer o quanto era tempero e o quanto era fumo. Se minha arma não estivesse ali, estaria junto dos pertences pessoais de Yojimbo, o que complicaria tudo.

Acendi uma tocha e dei uma volta no salão. Era espaçoso, porém apertado por tantos recipientes. Com tantos produtos viciantes, fazia sentido o sucesso daquela taberna. Quando me conformei que minha arma não estava ali, ouvi a voz grave e ruidosa de Yojimbo:

- Ora, ora, o que nós temos aqui?

Giovan e Miguel me olharam imediatamente.

- Ainda dá tempo de fugir, se quiserem. Eu não vou embora sem minha arma - sussurrei.

Meu amigo deu meia volta e começou a escalar os caixotes. Eu sabia que ele não iria me abandonar. Em vez disso, procurou por terreno elevado para dar cobertura. Miguel prontamente sacou sua espada. Do tamanho de um homem adulto, a lâmina resplandecia ao luar, uma visão deslumbrante. O homem tinha palavra. E quem não teria para salvar a própria filha?

- Não bastava os ratos, agora temos criaturas piores invadindo o meu estabelecimento - o sotaque do criminoso ainda era forte, o que destacava sua personalidade fétida. - Vamos. Mostrem seus rostos e eu poupo suas vidas.

- Apague a tocha - sussurrei para Miguel.

- Eu chamo a atenção e você pega eles de surpresa - o nobre disse antes de correr para o outro lado do armazém, fazendo a luz refletir pelos corredores de caixotes. Imediatamente, passos ecoaram na mesma direção.

- Quem será que está aí? Ladrões de galinhas não conseguiriam arrombar o meu estabelecimento. Será que é um cãozinho de caça do novo conde? Ou será um lacaio do Denali?

Enquanto Miguel atraía os capangas, eu tive uma ideia melhor do que cercá-los. Um passo de cada vez, posicionei-me e pude ver uma dúzia de homens passando em direção ao nobre. Esperei e entrei pelo corredor de caixotes depois que eles sumiram.

- Dá tempo de fugir ainda, também. É a segunda opção mais prudente depois de se render - Yojimbo se divertia.

Ouvi um gemido e um tombo. Então um segundo e um terceiro. Pela distância entre os barulhos, só podia ser Giovan dando conta de alguns capangas. Sem o meu amigo para nos dar cobertura, não teríamos nenhuma chance.

- Esquece a rendição e a fuga. Vocês vão morrer aqui - o criminoso se cansou.

Do outro lado do armazém, ouvi o som de metal colidindo. Miguel havia começado o trabalho com os outros capangas.

Apressei-me e encontrei o meu inimigo. Ele estava cercado por seis guarda-costas vestindo armaduras de aço e portando espadas longas. O próprio vestia sua estranha armadura lamelar, de placas retangulares atadas em filas horizontais. Eu jamais esqueceria daquele rosto. Focinho felino, finos lábios negros, presas afiadas, pelugem cinzenta por todo o corpo. Seus olhos verde-água brilhavam na penumbra como um predador preparando o bote.

Em suas mãos, a minha arma. Longinus era a minha glaive, uma lança com uma lâmina curvada do tamanho de uma espada curta em vez de uma ponta, útil tanto para perfurar quanto para cortar. Ela era mais do que uma ferramenta, era um legado, passada de geração em geração, até que eu a perdi. Até que eu perdi tudo que tinha.

Confesso que eu tinha dúvidas quando conde Miguel chegou e prometeu limpar a cidade do Sindicato. Agora, vendo Longinus de perto mais uma vez, eu não tinha dúvidas. A cidade tinha salvação. Tanto quanto a minha honra.

Sem cerimônias, sai de trás do caixote e investi em direção aos desgraçados. Meu ímpeto clamava por Yojimbo, mas eu não podia me permitir ser cercado pelos seus homens. Eu não podia ter nenhuma chance de falha. Em vez de um ataque direto contra o bestial, peguei impulso com a minha lâmina e saltei para o outro lado do grupo enquanto alguns perdiam tempo tentando me encurralar entre os caixotes.

Com uma mão, perfurei o pescoço de um dos guarda-costas e, com a outra, tomei o seu escudo. Enquanto os outros cinco começavam a compreender a minha manobra, arremessei o escudo contra o rosto de um deles, derrubando-o no chão. Sem conferir se os dois capangas estavam vivos ainda, ergui minha lança e apontei para os demais, sem permitir que nenhum avançasse sem ter o estômago aberto. Quando eles começaram a me cercar, eu estoquei contra o tórax de um deles, esticando ao máximo o braço e permitindo que a haste deslizasse até só segurá-la pela sua ponta, gerando um alcance de mais de dois metros. Sem esperar que eu conseguisse atacar daquela distância, o terceiro corpo desabou ao mesmo tempo em que eu voltei para a minha pose de combate.

Imediatamente um dos capangas avançou, mas os outros dois hesitaram. Ajoelhei-me e deixei sua lâmina cortar o vazio. Girei e tirei seus pés do chão com a haste. Fiquei de pé novamente e afundei a lança o rosto do infeliz.

- Fogo! - Alguém gritou, interrompendo a minha luta.

Ninguém seria burro o suficiente para olhar para trás, se não fosse o cheiro de fumaça se espalhando com tanta velocidade. A luz do fogo era forte e em breve seria impossível respirar dentro daquele armazém.

- Dane-se, não fui pago pra morrer - um dos capangas restante largou a espada e fugiu, sendo seguido pelo último.

Só sobrou eu e o Yojimbo.

- Você... - Ele me olhava faminto.

- Vim buscar a Longinus.

- Com que direito você quer essa arma de volta? Eu ganhei numa aposta limpa, lembra?

- Nada que você faz é limpo, seu desgraçado.

- Você podia ter sido rico ao meu lado. Agora, só sua vida vai pagar o prejuízo que me causou.

- Não me leve a mal, mas eu não estou a fim de morrer sufocado. Você sabe, seu armazém está incendiando - dei de ombros. - Vamos ser sucintos. Você morre e eu pego a Longinus e dou o fora daqui.

- A sua cabeça vai decorar o meu escritório, seu rato!

Yojimbo estocou uma, duas, três vezes, enquanto eu me esquivei e recuei. Não podendo ficar encurralado, aparei o quarto ataque com a minha haste e girei o meu corpo, usando a minha lança como um bastão contra o tornozelo do meu inimigo. Com uma agilidade extraordinária, ele saltou, fazendo a arma apenas raspar pelo chão, e prontamente girou a haste da Longinus contra o meu rosto.

Joguei o meu corpo para trás, apoiei minhas mãos no chão e vi o mundo virar um borrão enquanto me afastava numa cambalhota. Mal voltei para a pose de combate e Yojimbo já estava estocando de novo. Esquivei para a direita e contragolpeei, mas ele conseguiu aparar o meu ataque com a haste da Longinus. No mesmo movimento, o bestial me repeliu e girou a glaive de cima para baixo. Segurei minha lança com as duas mãos e bloqueei - um erro. Uma lança qualquer nunca teria qualquer chance contra Longinus, que partiu a arma em duas partes e me forçou a pular para trás para não ser partido ao meio.

Yojimbo sorriu ao me ver com os dois pedaços da arma despedaçada nas mãos. Eu sabia que jamais venceria sem Longinus. Afinal, eu não vim matar o meu inimigo. Isso nunca foi prioridade. Eu vim buscar a minha arma. Era hora de parar de errar.

Catei o escudo de um falecido e entrei em guarda. Com uma velocidade admirável, Yojimbo atacou na horizontal e foi bloqueado, girou e mirou a haste contra o meu outro flanco e encontrou minha proteção mais uma vez, ergueu Longinus e desceu sua lâmina contra minha cabeça e eu aproveitei a guarda aberta.

Com a mão esquerda, posicionei o escudo no alto e salvei a minha vida, com a mão direita, agarrei a haste, girei meu corpo e acertei o ombro do Yojimbo com toda a minha força.

O bestial rolou no chão.

Longinus estava em minhas mãos, finalmente.

Yojimbo se ergueu rugindo. Compreendendo que ele não aceitaria a derrota ao ficar desarmado, respirei fundo e preparei meu fôlego. Contudo, ele errou ao se entregar ao instinto e ao saltar em minha direção com as duas garras erguidas. Foi fácil estocar contra o seu abdômen. Ao se deparar com a morte, o bestial viu o erro e girou o corpo no ar, fazendo com que apenas o seu flanco fosse perfurado.

Devo respeitar o meu inimigo, qualquer outro guerreiro teria se entregado à dor, mas em vez disso, ele rolou e voltou a ficar de pé num único movimento. Ao ver que todo o teto do armazém estava coberto de fumaça, Yojimbo fugiu pela própria vida.

- Giovan? Miguel? Cadê vocês? - Gritei pelos meus aliados.

- Aqui! Rápido - o conde respondeu.

Tapei o rosto com a mão e corri o mais rápido que pude. Não dava para respirar com tanta fumaça ao redor. Perdi tempo entre becos sem saída de caixotes e pensei que desmaiaria ali mesmo, até que pude ver um brilho entre a fumaça e um vulto gritando por mim. Avancei com o que restava das minhas forças e teria desabado do lado de fora do armazém, se Miguel não tivesse agarrado o meu braço e me ajudado a correr para longe.

Tossi com força enquanto saboreava o ar fresco e senti meus olhos lacrimejarem com intensidade. Assim que consegui raciocinar com clareza, o desespero bateu.

- Cadê Giovan?

Ao perceber que o meu amigo não estava ali, nem esperei a resposta do nobre e corri de volta para o armazém. Era impossível. Uma cortina de fumaça espessa vazava pela porta e um calor cruel tomava conta da taberna. Quando eu comecei a odiar Miguel por ter nos contratado, ouvi atrás de mim:

- Aqui, idiota.

Lá estava ele. O palhaço do Giovan são e salvo.

- Seu filho de uma…

- Esfria a cabeça e vamos dar o fora daqui. Vai que o resto da gangue decide vir em retaliação.

Sem pensar duas vezes, nós três nos afastamos do estabelecimento o mais rápido que podíamos.

- Onde você pensa que estava? - Questionei enquanto corríamos.

- Eu não penso, eu sei muito bem onde estava. Quando o nosso querido conde teve a belíssima ideia de incendiar o armazém, eu vi que tava todo mundo fugindo e decidi garantir a vida de uma… Digamos “amiga”.

- Você abandonou a gente por uma meretriz do Yojimbo???

- Em primeiro lugar, não abandonei ninguém, nem tinha mais capanga nenhum quando o incêndio pegou de vez. E, em segundo lugar, não é meretriz, é massagista.

- Só não estou com mais raiva de você do que estou desse tal conde que botou fogo no armazém.

- Não precisa falar como se eu não estivesse aqui - o bigodudo interveio.

Paramos para descansar depois de algumas ruas. Ninguém nos perseguiria até ali.

- Inclusive - Miguel continuou. - Eu não teria tido a belíssima ideia de incendiar o armazém se não estivesse cercado por mais de dez homens.

- Quer saber? Pouco me importa. Eu tenho a Longinus, estamos todos vivos e ninguém vai sentir falta daquela taberna. Quer dizer, o Yojimbo e os clientes dele vão sentir, mas vocês entenderam. Vamos, agora podemos resgatar a sua filha.

- Opa, não tão rápido - Giovan interrompeu.

Era verdade. Faltava uma parte do acordo.

- Agora é a minha vez de buscar o meu pagamento.


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E, se quiser, confira a quarta parte: Imperdoável!

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