sexta-feira, 18 de março de 2016

Crônicas da Cidade Condenada: Crimes Heroicos

Ei! Esta é a segunda parte das Crônicas da Cidade Condenada. Se quiser ler a primeira parte, clique aqui.

***

Giovan

- Explica direito esse papo de resgatar a sua filha.

Eu estava realmente curioso. As coisas iam de mal a pior naquele condado, mas raptar a filha do regente era inédito.

- Eu pensei que podia consertar essa cidade… - Miguel se lamentou. - Reforcei a guarda, exigi treinamento, persegui criminosos...

- Sim, sim, a minha última visita à masmorra deixou isso bem claro - cortei o papo furado. - Mas raptar a sua filha já é algo extremo até pro Sindicato Informal. O que tu aprontou pra fazerem isso?

- Eu aprontei? Essa cidade está entregue aos ratos e eu é que aprontei?

- O mundo inteiro está entregue aos ratos. E aos coiotes e abutres também.

- Eu só quis limpar isso daqui.

- Sinceramente, achar que reforçar a guarda daria certo foi ingenuidade. A milícia já está inserida no esquema do Sindicato há muito tempo - Rogerus comentou.

- Eu pensei que conseguiria identificar e eliminar os corruptos antes que eles conseguissem revidar - Miguel esclareceu.

- Então você é o único homem nesse condado que não sabe quem é o verdadeiro cabeça da sua própria milícia. Todo mundo sabe que só sobrevive entre os milicianos quem servir aos interesses do Darethar Gulgrin. O que aquele anão tem de gordo, tem de corrupto.

- Ele é um dos capitães! Eu estava confiando todos os planos de segurança a ele!

- Que merda, heim.

- Eu vou executar o maldito em praça pública - Miguel socou uma parede.

- Aham, isso vai ser antes ou depois de você pagar a gente pelo resgate da sua filha?

- Já aceitou a missão, é? - Rogerus permanecia cético.

- Parece lucrativo - respondi.

- Não sei. É bom demais o homem que nos botou na masmorra nos oferecer uma missão.

- Mais um motivo pra ser lucrativo.

- Eu mandei prender vocês por caçarem fora de estação - Miguel contestou.

- Aquela mantícora já havia atacado duas caravanas naquela semana. A gente fez um bem ao seu condado - defendi-me.

- E vender o couro e o veneno fez bem a quem?

- Olha, o couro deve ter sido usado pro casaco de alguma dondoca. Já o veneno, é difícil imaginar se fez bem a alguém…

- Bom saber que você continua dormindo em paz à noite sabendo que ajudou assassinos.

- Todo mundo tem as mãos sujas de sangue nessa cidade. Ou vai dizer que a sua espada é só enfeite.

- A diferença é que eu só caço por sobrevivência.

- Nós também, bigodudo! Acha que a gente ia se meter no mato pra caçar mantícora por esporte? A cidade só voltou a ter dinheiro pra apostar na arena agora, até o mês passado tava todo mundo falido.

- Então por que não caçaram um animal qualquer? Tinha que ser o animal mais valioso dos bosques?

- Por que a gente não queria roubar o emprego dos outros caçadores. Mantícora ninguém caça. Era matar o monstro ou morrer de fome.

- Ninguém vai precisar caçar fora de estação depois que eu limpar a cidade.

- Olha, eu não abaixei o meu arco pra ouvir os seus sonhos de grandeza.

- Certo… Eu recebi uma carta - Miguel finalmente começou a falar o que interessava. - Os capangas do Gorn, aquele meio-orc, fizeram um ataque em massa enquanto Lys estava voltando da missa e me avisaram que, se não renunciar até o amanhecer, eu nunca mais vou vê-la.

- Isso é estranho, Gorn é só um bandoleiro bruto - Rogerus se pronunciou. - Ele só atormenta as partes mais pobres do condado, não tem nem capacidade de roubar quem tem dinheiro de verdade.

- Ele liderou homens o suficiente pra aniquilar os guarda-costas da minha filha.

- Lógico, ele é um dos bandoleiros com mais capangas - expliquei. - A tua vida de nobreza nunca deve ter te ensinado isso, mas quando você nasce e cresce na miséria, é fácil achar que um boçal como o Gorn é um bom empregador. A garotada se acha o máximo por ganhar uma espada curta de presente e começar a extorquir os vizinhos.

- Isso nos dá uma boa e uma má notícia - Rogerus tomou a palavra. - A boa é que, se Gorn está com a sua filha, não vai ser difícil achá-la. Todo mundo sabe onde fica o covil do cara. A ruim é que tem muita gente que acha que o imbecil é o protetor e que a milícia é a opressão.

- Só precisamos tirar a minha filha das mãos dele - Miguel estava confiante. - Amanhã eu mando uma unidade inteira da milícia dar cabo da gangue toda.

- E depois? Como fica aquele papo de nunca mais ir pra masmorra? - Questionei.

- Vocês dois conhecem a minha cidade melhor do que eu. Posso oferecer cargos de capitães.

- Ou uma sacola gorda de dinheiro e a gente mete o pé da cidade, que tal?

- Quando a minha filha estiver segura, a gente decide o que é melhor pra vocês.

- E o que me garante que você não vai nos jogar na masmorra amanhã?

- Se eu quisesse vocês na masmorra, teria mandado meus guardas caçá-los de novo.

- Falando nisso, não mandou por quê?

- Pensei que você não gostasse de perder tempo com conversa fiada.

- Tudo bem. Vou deixar essa passar porque gostei da sua resposta. E eu detesto puxar uma flecha e não atirar, preciso meter essa belezura na testa de alguém.

***

A caminhada foi longa, pois não podíamos ir direto sem chamar a atenção dos capangas do Gorn. O plano era invadir a espelunca que ele chamava de quartel pelos fundos e achar Lys sem sermos notados.

- Esse distrito parece um chiqueiro - Miguel resmungou.

- Chiqueiro é uma tradição da nobreza. Todo feudo tem um chiqueiro. Consequentemente, toda cidade precisa de um também - ironizei.

- Chiqueiros são feitos pros porcos, não pras pessoas - ele rebateu.

- Explica isso pro seu tio. Nunca nenhum guarda de milícia ou qualquer tipo de agente dele botou o pé aqui. Deve ser por causa do cheiro do lixo que os nobres despejam em cima do povo.

- Você fala como se fosse culpa minha.

- E não é?

- Eu já disse que quero limpar a cidade.

- É o que todo nobre diz.

- Se eu fosse como todo nobre, não teria contratado dois criminosos pra salvar a minha filha.

- Você ainda vai me explicar por que escolheu justamente dois criminosos.

- Tenho meus motivos. Um deles é que eu já não sabia em quem confiar dentro dos meus próprios homens.

- Nisso, eu acredito.

- Vocês dois podem calar a boca por um instante? - Rogerus sussurrou. - Estamos quase chegando.

***

- Dois capangas na porta - Miguel falou como se eu e o meu amigo fôssemos cegos. - Como vamos fazer pra entrar sem que eles chamem os outros?

Eles estavam a cerca de cinquenta metros e nós estávamos escondidos entre os casebres.

Moleza.

Prendi a respiração, mirei por um instante e disparei uma flecha no meio do rosto de um dos capangas. Sem dar tempo para o outro entender o que estava acontecendo, disparei mais duas flechas, uma no seu abdômen e outra no seu ombro. Só dá para ter precisão na primeira flecha, então eu gosto de garantir o serviço disparando uma extra no segundo alvo.

Miguel contraiu o rosto com a solução que eu arranjei para o nosso problema, mas não reclamou. Sem mais obstáculos, fomos até a porta, catamos a chave com um dos corpos e invadimos o covil.

O local mais parecia um lixão. Era tão bagunçado que ficava difícil imaginar para o que era utilizado. Depósito? Dispensa? Calabouço? Sala de reuniões? Por mais que fosse improvável encontrar pessoas ali, não era impossível imaginar reféns presos num canto no meio dos entulhos.

Acendi uma tocha para enxergar melhor e vi um vulto passando perto de um armário vazio. Não estávamos sozinhos. Larguei a tocha no chão e puxei o arco e uma flecha.

- Quem está aí?

Rogerus sacou sua lança e Miguel desembainhou sua espada de duas mãos.

- Eu é que deveria fazer essa pergunta - reconheci a voz rasgada de Gorn.

- É ele? - Miguel sussurrou.

- Sim - respondi.

- Você sabe quem somos e quem viemos buscar! - O conde esbravejou.

E Gorn riu.

- Vocês caíram na minha emboscada, isso sim. A princesinha está longe daqui - seguindo a voz, sabia em qual direção o meio-orc estava, por mais que não pudesse vê-lo ainda.

- Nesse caso, é melhor você dizer aonde ela está e sair do nosso caminho - o bigodudo rosnou.

Rogerus acendeu uma tocha a mais e rolou a nova iluminação pelo solo, aumentando um pouco o nosso campo de visão.

- Tenho uma ideia melhor: vocês morrem e fim de papo. Atacar!

Azagaias foram arremessadas das sombras, fazendo eu e Rogerus nos agacharmos, enquanto Miguel bloqueou o corpo com a lâmina e deixou que uma azagaia raspasse em sua armadura, sem provocar nenhum ferimento. Se fossem armas mais bem elaboradas ou se os atacantes não fossem tão ruins, estaríamos mortos.

Logo em seguida, capangas vieram para o corpo a corpo. Alguns humanos, alguns meio-orcs, todos com armaduras de couro fajutas e armas improvisadas, como tacapes, lanças, machados de pedra lascada ou uma espada curta no máximo. Eram barulhentos e eu aproveitei o despreparo geral para atirar assim que eles entrassem na penumbra.

O primeiro caiu com uma flecha na testa sem nem chegar perto da luz, o segundo foi perfurado no tórax quando tentou se aproximar pelo meu flanco e o terceiro foi pego de raspão sem ficar intimidado.

Recuei um passo e afastei o rosto para escapar do golpe de tacape, aproveitei que não tinha nenhuma flecha na mão direita e saquei minha espada curta. Sem tempo para um duelo, descrevi um arco horizontal, abri o estômago do meu inimigo e aparei o ataque de um novo capanga que investiu com uma lança curta. No mesmo movimento em que afastei a sua arma, perfurei sua garganta e deixei-o agonizar enquanto arremessei a minha espada no tórax de um adversário que não conseguiu nem chegar perto de mim.

Agora com espaço para respirar, saquei outra flecha, esperei por meros segundos e encontrei o meu novo alvo. Derrubei o primeiro com uma flecha no peito, derrubei o segundo com uma flecha no pescoço e mal arranhei o peitoral de aço do terceiro. Era Gorn brandindo o seu machado de duas mãos.

- Hul! Hul! Hul!

Em vez de surgir em carga, o meio-orc veio marchando e urrando ritmicamente, demonstrando ferocidade e disciplina. Pele esverdeada, quase dois metros de altura, armadura quase tão completa quanto a do Miguel, olhos lupinos por trás do elmo, machado grande em punhos. Confesso que, ao mesmo tempo em que compreendi como um brutamontes daquele havia se tornado líder de uma gangue, senti minhas pernas dando um passo instintivo para trás.

- Hul! Hul! Hul!

Disparei uma flecha, me dei conta de que estava tremendo e mal arranhei sua ombreira.

- Hul! Hul! Hul!

Eu precisava fazer o desgraçado calar a boca!

- Hul! Hul! Hul!

Saquei uma nova flecha e ele atacou antes que eu pudesse mirar.

- Hul!

O machado foi erguido e desceu na direção da minha cabeça, obrigando-me a saltar em cambalhota pela lateral para não ser morto.

- Hul!

O machado girou rente ao chão, procurando as minhas pernas, errando por centímetros enquanto eu girava para longe.

- Hul!

O machado tentou me partir pela metade uma última vez, criando uma fenda no solo.

Em vez de insistir, Gorn deu meia-volta e se preparou para se proteger de Rogerus e Miguel. Sem se aproximar, meu amigo estocou, sendo repelido pelo machado. O conde tentou aproveitar, mas o meio-orc demonstrou agilidade ao se esquivar da espada de duas mãos e contra-atacar girando seu machado na horizontal na altura do peito do bigodudo, abrindo um corte no aço.

Aproveitando o impulso do primeiro ataque, o nosso inimigo deu um passo adiante e afastou Miguel com um golpe vertical de cima para baixo. Não sei se a intenção era matar o nobre ou apenas tirá-lo de perto, porque o ataque seguinte pareceu muito bem calculado contra Rogerus. Gorn quase partiu o meu amigo em dois, que se abaixou no último segundo e acertou sua lança no tornozelo do meio-orc, tentando derrubá-lo. Apenas tentando, porque o infeliz pareceu nem sentir o impacto. Miguel retornou ao corpo a corpo e espada e machado colidiram cinco vezes seguidas entre ataques e bloqueios de ambos os lados.

Eu podia acertar uma flecha na nuca do babaca, mas a gente precisava dele vivo para saber onde estava Lys. Um disparo no braço ou na perna também ajudariam, se não fosse arriscado demais acertar um dos meus aliados sem querer.

Rogerus estocou apenas para fintar e rodopiou a haste de sua lança contra o elmo do meio-orc, fazendo o metal reverberar, mas nada que incomodasse o brutamonte, que se dedicava a atacar Miguel.

- Hul!

O machado enganchou na ombreira do bigodudo e foi puxado com violência, arrancando fora a proteção. Teria desmembrado, se não fosse a espessura do aço.

- Hul!

O machado acertou com brutalidade a espada de Miguel, que ergueu sua arma na altura do tórax para não ser aberto ao meio.

- Hul!

O machado não decepou por pouco a canela do nobre numa tentativa estratégica de concentrar as defesas num ponto e atacar em outro.

A espada descreveu um arco horizontal e cortou apenas o ar.

A lança estocou e só raspou na armadura do meio-orc.

A flecha assobiou e atravessou o tornozelo do desgraçado. Dessa vez, o urro foi de dor.

Miguel aproveitou para acertar o cabo do machado de Gorn, estourando a madeira e desarmando nosso inimigo. Rogerus esticou sua lança e parou o ataque tão perto do olho do infeliz, que ele caiu para trás no susto.

- Agora você vai falar - o conde continuava ameaçador, mesmo ofegante.

- Os nobres só vêm atrás dos miseráveis pra trazer morte mesmo.

- Você foi atrás da minha filha primeiro!

- E provoquei menos mortes do que vocês três.

A espada de duas mãos se aproximou do pescoço do meio-orc.

- Aonde ela está?

- Eu não tenho medo da morte.

- Eu não quero te matar.

- Estranho você falar isso depois de tanto sangue.

- Fale aonde está minha filha e você vive.

Os dois se encararam por um longo momento. Nunca haveria confiança ali. Talvez trégua.

Talvez.

- De uma forma ou de outra, eu morro mesmo. Eu entreguei a princesinha pro McKinley.

- Você entregou a minha filha pro líder do Sindicato Informal??? - A lâmina encostou na garganta.

- Fodeu - soltei sem querer.

- Eu sabia que morreria… - O olhar lupino continuava firme.

Miguel ficou estático, em choque. O braço enrijecido, pronto para tirar a vida do homem que havia condenado a filha dele.

Então, o nobre deu as costas e saiu pela porta por onde entramos.

***

- Eu sei onde fica a torre do Denali McKinley, precisamos bolar um plano pra tirar minha filha de lá.

- Espera aí, o combinado era resgatar a Lys do Gorn, invadir a torre do McKinley é uma história muito mais complicada - protestei.

- Você está de palhaçada, né?

- Invadir a torre é suicídio - Rogerus foi sucinto. - Ser um fora da lei é melhor do que ser morto.

- Vocês não podem me abandonar agora!

- E você não pode levar a gente pra morte certa - cruzei os braços.

- Eu deveria ter mandado executar os dois!

- E você deveria renunciar. Ou a sua guerra contra o Sindicato é mais importante do que a sua filha?

- Quer saber do que que eu vou renunciar? Da bosta da minha vida! Se for pra morrer, vou morrer lutando e não lembrado como mais um covarde que se curvou pro Sindicato! Fodam-se vocês dois! Eu vou sozinho!

E deu meia volta e marchou.

- Espera - eu iria me odiar pelo o que estava prestes a oferecer.

Miguel me olhou como se eu fosse um dos raptores da sua filha.

- Vamos fazer o seguinte. Você adianta o pagamento e a gente vai com você.

- Vão pro Abismo!

- É a sua única chance de salvar a sua filha, idiota!

- Eu não tenho dinheiro comigo! E muito menos um pergaminho e uma pena pra fazer qualquer decreto!

- Já temos dinheiro e já fugimos dos seus decretos antes. Não é isso que a gente quer. Bom, pelo menos não é isso que eu quero. Rogerus?

- Falta muito pro amanhecer e a sua filha vale mais se estiver viva e intacta - o meu amigo finalmente abriu a boca. - Se ela estivesse nas mãos do Gorn, eu estaria preocupado do imbecil machucá-la. Nas mãos do McKinley, ela não deve estar nem algemada. Deve estar sendo tratada como uma prisioneira de luxo. Eu tenho algo a pedir. Se você me ajudar, eu vou até o final com você.

- E depois vai ser a minha vez - levantei a mão.

Miguel se acalmou um pouco para nos ouvir. Só um pouco mesmo.

- E o que você quer?

- Quero que você me ajude num resgate.


***

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E, se quiser, confira a terceira parte: O Olho do Tigre

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