sexta-feira, 24 de julho de 2015

00: Brumas (Parte 2)

Ela trajava robes vermelhos e brancos, entrelaçados de forma complexa. Seu cabelo era ornamentado com pentes prateados e seu rosto estava completamente maquiado em branco, com lábios e olhos em vermelho e uma listra ondulava de uma maçã do rosto a outra, passando pelo nariz, num tom escarlate. A maquiagem era tanto ostensiva quanto ritualística - digno de uma sacerdotisa de Azathallas, o Lorde da Ganância.
Seus olhos vacilaram para o leque em sua mão, provavelmente escondendo algo.
- Saiba que o meu código de conduta não faz distinção entre homens e mulheres.
Ela me encarou. E sorriu.
- Eu mato apenas aqueles que se interpõem em meus objetivos e aqueles fortes o suficiente para merecerem ser desafiados - prossegui. - Suas magias são notáveis e eu receio que você se encaixe no último critério.
- Eu vou facilitar as coisas pra você - ela proferiu antes de ficar invisível.
Tentei me concentrar em seus passos. Ou ela não saiu do lugar ou era leve como uma aranha.
- Sua força de vontade me impressionou. Poucos resistem a uma ilusão minha. Duas, então, surpreendente. Como não sou uma assassina, minha missão de proteger o templo já falhou, pelo visto.
- Onde estão os outros clérigos? - Interroguei.
- Clérigos? Esse seu idioma é rústico e bruto. O termo shugenja é mais apropriado.
- Pergunte à minha espada se eu me importo com o termo mais apropriado.
- Pra sua sorte, só sobrou um shugenja além de mim.
- O seu mestre.
- Sim, aquele porco.
Foi minha vez de sorrir.
- Eu só quero o pergaminho do Sexto Selo. Entregue-o e ninguém mais morre.
- Pergunte às minhas ilusões se eu me importo com quantos ainda vão morrer nesse templo.
- Então me entregue o pergaminho e a gente encerra isso.
- Não está aqui. O templo é apenas a coleção pessoal do meu mestre. As peças que ele gosta de expor. Seus pertences mais estimados nunca ficam longe dele.
- Você era leal quando ele te mantinha por perto? - Eu me diverti.
- Eu era leal enquanto havia outros shugenjas para liderar.  
- Ambiciosa.
- Gananciosa, pra ser mais exato. E não vou ficar servindo alguém com menos potencial do que eu. Ainda mais enquanto ele perde seus poderes.
- Perde, é?
Uma risada suave ecoou pelo templo.
- Ele estagnou. Está concentrando suas conquistas, em vez de expandindo. A Ganância não gosta de ser trocada pela Tirania. E a Tirania exige muita devoção antes de ceder poderes. Como o idiota nem percebeu o quanto seus hábitos mudaram nos últimos tempos, seu poder enfraqueceu. Aposto que ele mesmo nem reparou nisso.
- Mas você, como uma legítima sacerdotisa, percebeu.
- Você vai lembrar de mim quando eu me tornar sumo sacerdotisa.
- Bom pra você. Onde está o meu alvo?
- Ele sempre se esconde na Casa de Recepção.
- E o pergaminho está com ele?
- E se eu quiser o pergaminho também?
- Não acha melhor você ficar com tudo no templo, menos a única coisa que eu quero?
Um breve momento de silêncio.
- Qual é o seu interesse no Sexto Selo?
- Os Selos, como tudo de podre que existe nesse mundo, foram criados por mortais.
- E…?
- E nenhum mortal faz nada sem um interesse próprio. Talvez o criador do Sexto Selo tivesse interesses parecidos com os meus.
- Olha só… Tantas pessoas querem proteger os Selos… Outras querem destruir… E você quer usá-lo?
Foi a minha vez de rir.
- A Casa de Recepção é a menor, que fica mais próxima do muro norte, né?
- Essa mesma.
- Obrigado.
E me retirei do templo.
Caminhei pela ponte até o caminho de pedras, contornei o lago e segui pela torre de vigilância oeste. Um único guarda estava tentando se esconder e eu apenas olhei em seus olhos para que ele jogasse o arco fora e se encolhesse lá dentro. Havia um muro interno com portões ao lado da torre, devidamente abandonado pelos desertores.
Logo depois do lago, mais um muro e mais postos de vigia cercavam as duas casas. Sem obstáculos, entrei pelo portal. À esquerda, um caminho levava para um jardim interno, com mais árvores e lagos, uma obra de artes de um homem muito rico. As casas eram grandes, uma de três andares e outra com apenas um. Pintadas em branco e marrom, com telhados pontudos, varandas espaçosas e gárgulas de pedra em formato de ogros.
Boa parte da Casa de Recepção era cercada por paredes de papel, então eu simplesmente rasguei o meu caminho até uma sala de estar - que por si só já era mais ornamentada do que os aposentos de muitos nobres. Sem perder tempo, rasguei mais uma passagem e cheguei a uma sala retangular com uma mesa rasteira, almofadas e armaduras e espadas decorativas. Segui pela direita e entrei num corredor. À minha esquerda, um pátio interno, à minha direita mais uma sala de estar. Continuei explorando, passei por uma sala de chá à esquerda e por um quarto de hóspedes à direita. Mais alguns passos, um camarim à minha esquerda e uma sombra por detrás da parede de papel à minha direita.
Um samurai pulou com a espada em punhos e tentou um golpe de cima para baixo, acertando o chão enquanto eu dei uma cambalhota para frente.
- Devia ter fugido com os outros - lamentei.
- Sua morte será a minha fortuna - ele se iludiu.  
O cavaleiro tentou um golpe horizontal, que encontrou o meu escudo, uma estocada, desviada pela minha lâmina e mais um ataque de cima para baixo, que teria acertado o chão, se eu não tivesse trespassado o seu abdômen antes. Caiu o infeliz para um lado e a espada para o outro. Fácil.
E dentro da sala, o meu alvo.

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