segunda-feira, 20 de julho de 2015

00: Brumas (Parte 1)

A neblina é pior do que as trevas, pois faz seus olhos acreditarem que estão enxergando.

Disseram que o Leste Radiante era uma terra mágica, com belas árvores de cerejeira, música e poesia das mais refinadas e filosofias e conhecimentos ancestrais. Mas, afinal de contas, era apenas mais um pedaço de terra decadente como o resto do mundo.
E eu estava diante do maior exemplo disso: o templo de um sacerdote opulento. O território era todo cercado por um rio de cinco metros de largura e muros de três metros de altura, uma torre pequena de múltiplas beiradas vigiava cada sentido cardeal e apenas três pontes davam acesso ao palácio que o suserano local chamava de mosteiro. Dentro, árvores, lagos, uma dúzia de casas menores, mais algumas torres de vigia, vários muros, três construções principais e incontáveis guardas - é lógico.
A cinquenta metros dos muros, eu comecei os preparativos. Espada e arco a postos. Escudo nas costas por enquanto. Poções mágicas devidamente preparadas. Sete ao todo. Foram caras, nada que um punhado de joias do sacerdote não pagasse. Se as informações que eu comprei estivessem certas, ainda sobrariam algumas depois da incursão. Se não, a fuga também estaria garantida e o meu próximo alvo estaria marcado.
Hora de começar.  
Bebi duas poções de uma vez só e senti o meu corpo todo estremecer com seus efeitos. A primeira ardia na garganta e a segunda era quase enjoativa de tão doce. Imediatamente senti meus músculos se retesarem, os pelos da nuca se arrepiarem e a adrenalina subir. Era como se uma corrente elétrica circulasse dentro de mim. Olhei para minhas manoplas e elas já estavam transparentes. Num instante, eu olhei minha armadura de combate, minhas botas de metal, as ombreiras e só vi o chão abaixo de mim. Olhei para o meu destino. E corri.
Minha armadura de aço era pesada, mas os anos de experiência tornaram-na confortável, nada além de um pequeno contratempo. As lendas contam histórias de guerreiros que dominavam o campo de batalha como se fossem feitos de armaduras e espadas. E eu estava prestes a me tornar uma lenda.
Com passos largos impulsionados pela poção e invisível como um fantasma, eu avancei como uma flecha, saltei pelo rio e fui de encontro ao primeiro muro. Agarrei seus tijolos de pedra como se as manoplas fossem confortáveis como as minhas próprias mãos e comecei a escalar. Um dos guardas da ponte de acesso olhou na minha direção, mas estava longe demais para achar que o barulho da armadura contra o muro fosse mais do que sua imaginação. Sem dificuldades, ultrapassei o primeiro obstáculo e invadi o jardim.
O lugar era bonito, tenho que confessar. Bonito de forma que apenas muito dinheiro podia sustentar.  O caminho era demarcado por uma estradinha de pedras cercada por árvores e arbustos. Apenas dois guardas passavam por perto e eu deixei que eles se distanciassem até começar a andar. Mesmo invisível, minha armadura era irremediavelmente barulhenta.
Quando ficou seguro, avancei até a ponte que dava acesso à ilhota do templo principal. O local de adoração ficava estrategicamente cercado por um lago com um único acesso. O isolamento era justificado pela paz e pela harmonia. Os quatro guardas na ponte e mais os dez no jardim do templo é que não tinham explicação, além da fortuna guardada lá dentro.
Eu não precisava de mais do que vinte metros para acertá-los. Eles morreriam de forma rápida. E ainda dizem que não existe piedade entre os matadores.
Saquei o arco, posicionei a flecha, mirei o peito do primeiro guarda e respirei uma única vez. Depois que começasse, não poderia parar. Sentir a mandíbula pressionando era inevitável nesses momentos. Antes da primeira flecha chegar ao alvo, eu já estava posicionando a segunda e ajustando a mira. Quando o primeiro guarda se desequilibrou, já sem vida com a flecha no coração, a segunda seta atravessou a garganta do outro. Um corpo no chão, outro desabando e a terceira flecha se encravou no meio do rosto do penúltimo guarda da ponta, uma cena nada bonita, confesso. O último guarda ficou pálido com a cena. Eu não podia perder tempo mirando com precisão, então acertei uma flecha no seu estômago e avancei pela ponte.
Óbvio que os guardas do jardim viram as mortes. Seus olhos, geralmente estreitos e amendoados, estavam arregalados e eu não sabia se eles gritavam ordens ou pedidos de socorro. Aproveitei os últimos segundos das poções e distribui flechas nos guardas. Dos dez, dois tiveram tempo de correr para dentro do templo e um eu deixei viver porque estava soando a corneta. Quando as primeiras guarnições chegaram correndo e o corneteiro tentou fugir, eu disparei uma última flecha em seu ombro. Ele viveria para espalhar aos outros guardas que uma ameaça invisível estava espalhando morte.
Vários guardas saíram de dentro do templo, talvez vinte, espadas em guarda e medo estampado no rosto. As guarnições cercaram o lago com arcos, mas o excesso de árvores na ilhota seria cobertura o suficiente para que nenhum deles tivesse competência de me atingir.
Cinco cavaleiros se juntaram aos guardas do templo. Quatro deles usavam armaduras lamelares, feitas com pequenas placas retangulares atadas em filas horizontais. Bem primitivas. O líder usava uma armadura de verdade. Não era aço puro como a minha, mas se dividia em placas e escamas. Enfeitada demais para o meu gosto, cheia de brasões e uma máscara simulando uma bocarra no elmo. Eles chamavam a si mesmos de samurais, se não me engano.
Suas espadas inspiravam algum respeito, ao menos. Lâminas longas e levemente curvas. Aparentemente afiadas até a alma. Quanto será que valeriam nos reinos do oeste?
Enfim, as poções começaram a perder o efeito. Peguei mais uma e bebi enquanto meu corpo desacelerava e ficava visível. Senti meus músculos incharem. Tudo. Braços, pernas, ombros, pescoço. Quando todos puderam me ver, eu já estava com o arco nas costas e a espada e o escudo nas mãos.
O idioma deles ainda era confuso para mim, mas pude entender palavras como “bruxo” e “abissal”. O líder começou a comandar sua pequena tropa. Poucos estavam livres do medo. Seria fácil.
Eles vieram num grito quase uníssono. Aparei um golpe com minha espada e bloqueei outro com o escudo. No momento seguinte, minha arma dançou pelos seus abdômens e ambos caíram. Deu para ver a cara de arrependimento do guarda que se aproximava antes de eu estocar contra o seu tórax. Um infeliz tentou se aproveitar da minha guarda aberta, mas eu fui mais rápido e cortei sua garganta no mesmo movimento em que retornei à posição de defesa.
Mas uma leva, dessa vez acompanhada de um dos samurais. Tudo o que eu precisava. Evitar os golpes dos guardas foi fácil, eu quase não precisava me concentrar neles. No instante em que o samurai preparou sua estocada, todos os seus próximos passos ficaram óbvios. Ele estendeu os braços com ímpeto, eu girei minha lâmina contra a dele e subi num corte diagonal contra o seu torso. Ele quase se partiu ao meio.
Os guardas que não correram se reagruparam atrás dos quatro samurais restantes. Não tinha mais do que meia dúzia agora. Ao longe, gritos como “fujam”, “morte” e “desisto” se espalhavam. Olhei por entre as árvores e os arqueiros que não estavam me esperando do outro lado da ponte também haviam fugido.
- Até quando vai mandar seus homens morrerem no seu lugar? - Perguntei ao líder.
Ele entendeu o meu idioma.
O samurai devia ter o meu tamanho e sua armadura parecia um pouco mais leve e um pouco menos resistente que a minha. Seus olhos eram determinação pura. Talvez o único tolo o suficiente para ter alguma honra por trás da armadura bonita. Era até um desencargo de consciência matar um homem que não fugiria nem diante da morte iminente.
Ele marchou em minha direção numa linha reta, ergueu a espada acima da cabeça, inflamou os olhos e gritou enquanto desceu sua arma contra a minha cabeça rápido demais para que eu pudesse aparar o golpe ou contra-atacar. Para sua infelicidade, não rápido o suficiente para desviar e eu já estava um passo ao lado quando ele acertou o gramado e a minha espada já estava girando em direção à sua nuca quando ele começou a ajustar a sua guarda. Observei sua cabeça rolar no chão decepcionado. Foi fácil demais.
Os outros três samurais e o punhado de guardas já haviam atravessado a ponte quando eu caminhei para dentro do templo. Se era verdade que esses cavaleiros juravam lutar até a morte, homens de palavra estavam em falta até no leste.
Quando dei meu primeiro passo no piso de madeira, ele virou lama. Meus pés afundaram e tudo ao meu redor se transformou. Os pilares viraram árvores finas e retorcidas, o altar virou um pedregulho e as paredes viraram neblina. À minha frente, uma figura esguia, coberta de pelugem negra, com um par de asas enorme e rosto parecido com o crânio de um equino me aguardava.
Minha primeira reação foi estancar diante da figura macabra. A segunda foi olhar novamente ao meu redor. Eu sabia que não estava num pântano. O cheiro de incenso ainda era forte, bem destoante da lama nos meus pés. Eu sabia que aquilo era um templo. Não havia porque eu enxergar qualquer coisa diferente. Então, a ilusão, aos poucos, se dissipou. O chão de madeira, os pilares, o altar, as paredes e as incontáveis estatuetas de ouro e incensos aromatizantes se tornaram reais. E uma mulher me encarava no lugar do monstro de antes.


3 comentários:

  1. Muito bom
    Linguagem fácil pra ler

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    1. Ei! Fico contente que tenha agradado, a intenção é realmente ser um texto acessível para todos. E espero que goste dos outros contos daqui do site também!

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  2. Ansiosa pra saber quem é a mulher. Parabéns pelo trabalho! De coração. Gosto dessas surpresas que a gente recebe sem esperar. Espero que o resto seja tão bom quanto.
    Falei que comentaria kkk (:

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