sábado, 27 de fevereiro de 2016

Irmãos (Parte 4)

- Por favor, não deixe que eles me devorem vivo.

Gladius stava transtornado. Passara a tarde toda indignado com a declaração de uma noiva. Era dever dele, como nobre, se casar e fortalecer a família, gerar um herdeiro e honrar o pai. Mas ele não queria nada disso. Ainda tinha um ímpeto muito forte e desejava viajar. Desejava nunca parar de viajar, para falar a verdade.

Entramos juntos na sala de jantar. Pelo menos duas dúzias de convidados nos aguardavam. O pai de Gladius se sentava na cabeceira da longa mesa de pedra cinzenta e reservara dois assentos ao seu lado direito para nós. Sentamos e começaram as formalidades. O pai fez um discurso sobre o quanto se orgulhava do filho e o quanto era bom tê-lo em casa, onde – ele falou soletrando – era o seu devido lugar. Os parentes estavam orgulhosos enquanto o meu amigo não estava mais com o sorriso descontraído no rosto. Em vez disso, estava com a expressão fechada como alguém que realiza um trabalho com desgosto. Eu compreendia. Gladius não fizera nada demais e estava sendo elogiado por, supostamente, obedecer ao seu pai. Nosso mestre não nos ensinou a ver mérito onde realmente não havia. Meu amigo estava tenso, pois sabia que decepcionaria a família em breve. Eu estava tenso porque sabia estaria lá para assistir a cena.

Seu pai percebeu o clima do filho e, estrategicamente, se manteve ocupado com conversas paralelas por horas. Sua mãe e sua irmã conversavam baixo entre si ao ponto de só as duas ouvirem uma a outra, sempre inclinando um pouco o queixo para baixo e mexendo o lábio ao mínimo para ninguém bisbilhotar ou ler o que falavam – artes femininas. Eu e Gladius estávamos entediados. Preferíamos estar treinando ou bebendo em algum canto – bebendo de verdade, não o vinho aguado que estava sendo servido. Eu e ele trocamos meia dúzia de palavras sobre a harpista do jantar ou sobre os dias de viagem, nada além de banalidades que nos irritavam mutuamente.

Uma hora, o pai de Gladius fez questão de acender o pavio da noite. Era obvio que uma hora ele começaria.

- Mas, em breve, meu filho conhecerá sua noiva.

Sua irmã e sua mãe pararam de cochichar e prestaram atenção em nós.

- O quão breve se refere, pai?

- Oras, o mais breve possível! Essa semana ainda!

Gladius me olhou de canto de olho.

- Não será possível – ele foi prático.

A mesa parou para nos olhar.

O rosto do patriarca desmanchou o bom humor e assumiu a severidade militar.

- Será totalmente possível, meu filho. Você está aqui e ela virá ao seu encontro. Celebraremos sua festa de noivado.

- Pai, é necessário ser um cidadão para ter direito ao matrimônio e eu ainda não tenho esse direito.

- Não fale bobeiras, todos nós sabemos que esteve treinando duro nos últimos sete anos, reconhecemos isso como o serviço militar que todo homem deve cumprir para se tornar um cidadão. Você completou a sua tarefa, já pode se casar!

- Não pai, todo homem deve proteger a sua cidade antes de se tornar um cidadão e eu não fiz isso.

O patriarca cerrou o punho segurando parte da toalha de mesa e franziu todo o rosto, controlando sua fúria.

- Não seja por isso, garoto – falou pausadamente, se segurando. – Você entra para a milícia, protege sua cidade e conhece a sua esposa.

- Imagino que minha noiva deve ser de boa família e tal boa família não se agradaria em casar sua filha com algo abaixo de um capitão, não é? E ninguém aqui acharia digno promover um garoto a capitão por mero interesse familiar.

- Mero interesse familiar? – O pai repetiu entre os dentes. Parecia pronto para pular por sobre a mesa e espancar o filho. – O seu sonho de menino era treinar para ser um gladiador e eu lhe concedi esse desejo e agora você se recusa a cumprir a vontade que qualquer pai tem de ver seu filho casando com uma boa moça!? – Seu rosto começava a avermelhar.

Espiei ao meu redor, mas a sala parecia congelada olhando os dois. Até a harpista havia parado sua harmonia e parecia entretida com a situação.

Gladius levantou e fez a única coisa que sabia fazer além de lutar: usou sua lábia.

- Eu jamais o desonraria, pai! Muito pelo contrário! Quero lhe agradecer por ter atendido ao meu desejo juvenil e quero fazer valer o seu investimento. Quero ir para as arenas!

Todos arregalaram os olhos, imaginando que meu amigo havia cavado a própria cova com suas palavras, seu pai demonstrou alguma curiosidade pelo o que estava ouvindo. Gladius prosseguiu:

- Já que não servi à minha cidade devidamente e, agora, demoraria para eu ser um membro conceituado na nossa milícia, me proponho a honrar os anos de treinamento indo para as arenas e me tornando um campeão! Vencerei em nome não só de minha família e também de minha cidade! Allandria será conhecida não só como a cidade que carrega o nome da Matriarca da Justiça, mas também por possuir o mais ilustre dos gladiadores! – Meu amigo inflamou.

Todos se surpreenderam com suas palavras. Todos esperavam alguma reação. Alguma, qualquer, não importava qual fosse, para poder imitá-la e consagrar a cena.

Eu me levantei e aplaudi.

Em seguida, um ou dois aplaudiram e mais e mais e a mesa inteira estava de pé e os talheres vibravam sobre a mesa. O patriarca abriu um sorriso de canto de rosto, se ergueu, beijou o rosto do filho, o abraçou e saboreou os aplausos.

Dois exibidos.

***


- Obrigado por ontem, salvou a minha pele.

- Eu não fiz nada, foi o seu discurso que fez valer a noite.

- Pare de falar bobeiras, se não fosse por você ao meu lado, eu teria sido a sobremesa da noite.

- Se ficar falando assim por ai, vão nos chamar de pederastas.

- Pelo menos acharão que sou eu que fico por cima.

Rimos juntos um pouco e pegamos nossas mochilas.

Já era manhã do dia seguinte e estávamos partindo para Arena, o Reino dos Guerreiros, enfrentar o nosso primeiro desafio real.

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